São Paulo, domingo, 3 de maio de 1998
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Quase gêmeos

RENATA LO PRETE

O alerta partiu de uma leitora. "As idéias e as palavras" de Arnaldo Jabor em seu artigo do dia 21 de abril pareciam "muito familiares". Depois de consultar o arquivo digital da Folha, ela descobriu de onde vinham: do próprio articulista, que publicara o mesmo texto, com poucas alterações, em 23 de janeiro de 1996.
A ombudsman refez o caminho e chegou a igual conclusão. Os artigos são "quase gêmeos", como definiu a leitora.
No mais antigo, intitulado "Somos todos penetras no Primeiro Mundo", Jabor discorre sobre o sentimento de inadequação que invade brasileiros em Nova York e a orfandade dos intelectuais de esquerda. Faz suas reflexões a caminho do Brasil.
O texto do dia 21 é um pouco mais curto (1.018 palavras, contra 1.100 do anterior). Jabor não está mais no avião. O comentário sobre os transeuntes na 5ª Avenida se desloca para a Broadway. E o motorista de táxi com quem conversava se transforma em vendedor de cachorro-quente.
As diferenças terminam aí. Em números: 59% do que saiu na semana retrasada é reprodução literal do material de 1996; desconsideradas as alterações cosméticas, a intersecção sobe para 65%.
Entre essas mudanças estão a substituição de vocábulos -"promessa" virou "esperança"; "alguns", "meus inimigos"; "gorjeta", "mixarias"- e a introdução de expressões ou frases no meio de períodos antigos. Nos cinco primeiros parágrafos há apenas duas sentenças diferentes do original.
A descoberta da clonagem de Jabor não foi obra de um desafeto, mas sim de uma admiradora de seus artigos, que a Ilustrada traz desde 1991.
Professora de história, ela utilizou muitas dessas colunas para discussão com seus alunos. "Percebi imediatamente a "semelhança' por ter analisado exaustivamente o artigo, tanto na época da publicação quanto depois", relatou à ombudsman.
A primeira versão é um dos trabalhos de Jabor que mais a impressionaram. "Infelizmente, a "republicação' nem sequer alcança, no meu entender, a fina qualidade do original."
Trabalho em progresso
Em conversa telefônica com a ombudsman na quarta-feira, o ex-cineasta rejeitou de maneira veemente a idéia de que tenha produzido um clone a partir de seus próprios escritos.
"Os artigos são semelhantes", disse em Nova York, onde mora. De lá envia as colaborações que a Folha e "O Globo" publicam simultaneamente, além de gravar participações em telejornais da Rede Globo e no programa "Manhattan Connection", do canal GNT.
Jabor considerou ter feito algo "comum" e "perfeitamente plausível". Argumentou que articulistas realizam um "trabalho em progresso", no qual a repetição é intrínseca.
"Reutilizei trechos de idéias para tratar do mesmo tema", afirmou. "Nelson Rodrigues fazia a mesma coisa."
Confrontado com o fato de que, neste caso, o procedimento levou à reprodução literal de artigo anteriormente publicado, Jabor respondeu que "isso não tem importância".
Por fim, em tom bastante inflamado, perguntou: "Você está sugerindo que eu deveria ter disfarçado melhor?"
É claro que não.
Jabor não cometeu plágio, esse sim o mais grave delito autoral. Mas tampouco agiu de forma "plausível", como defendeu à ombudsman.
Tomados como regra geral, alguns de seus argumentos se sustentam. É sabido que boa parte dos colunistas se debruça continuamente sobre assuntos de sua predileção.
Nesse eterno retorno, idéias e palavras são repetidas, às vezes com aviso do próprio autor. Entusiasta ou crítico, o leitor sabe que encontrará uma dose de redundância pela frente, e não raro procura por ela.
Sem transparência
No entanto, o que Jabor disse não resiste à comparação dos dois textos apontados pela leitora. Uma coisa é resgatar histórias e raciocínios. Outra, muito diferente, é republicar um artigo praticamente na íntegra sem nenhum tipo de esclarecimento ao leitor.
Não é correto apresentar como se fosse novo um texto que já saiu no jornal. Se, por algum motivo, Jabor considerava oportuno o reaproveitamento do artigo, no mínimo isso deveria ter sido informado ao leitor com toda a transparência.
O episódio fere a credibilidade do autor, e, por tabela, arranha a da Folha, que tem Jabor em seu primeiro time de colunistas. As assinaturas "de grife" respondem por parcela importante do prestígio do jornal.
Eleonora de Lucena, secretária de Redação, diz não ter lembrança de caso como esse na Folha. "O articulista alega que os textos não são idênticos. Ainda assim, teria sido melhor evitar a publicação", afirma. A Ilustrada não havia se dado conta da coincidência percebida pela leitora.
Quanto a ela, espera uma explicação. "Se o objetivo fosse retomar o artigo anterior, isso deveria estar explícito", ponderou. "Como eu, vários fãs de Arnaldo Jabor devem ter ficado espantados e curiosos: o que aconteceu com nosso articulista?"
De nada adiantará insistir na tese de que as colunas não são iguais. Os "gêmeos" descobertos pela leitora só não são univitelinos porque, além das mudanças de ambientação, foram suprimidos trechos do original e acrescentados dois novos parágrafos. No mais, é praticamente a mesma coisa.
Os brasileiros em Nova York podem ter perdido as ilusões, mas com o leitor da Folha aconteceu coisa pior nesse episódio: ele foi iludido.





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