São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002

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OMBUDSMAN

Comédia sem graça

BERNARDO AJZENBERG

O ano não esperou o Carnaval para começar. Basta mencionar sobrenomes como Eller, Daniel e Olivetto.
A julgar pelas conclusões oficiais, alguns veículos da imprensa pisaram feio na apuração da causa da morte de Cássia Eller.
Muita trapalhada se viu nos primeiros dias de cobertura do assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André.
Tudo indica, até agora, que o episódio do sequestro do dono da W/Brasil, mais recente, não enfrenta tantos enigmas.
Não creio que a cobertura da Folha nesses casos a tenha comprometido. Mas um primeiro deslize surgiu no noticiário sobre o 2º Fórum Social Mundial (FSM), entre 31 de janeiro e 5 de fevereiro, em Porto Alegre.
Acredito que o jornal não tenha estado à altura do desafio que a cobertura do evento exigia.

POA e NY
Os participantes do FSM podem ser divididos em organizações não-governamentais, sindicatos, entidades, partidos, ativistas, políticos, intelectuais, indivíduos ou grupos exóticos.
A uni-los, uma ainda difusa crítica à "globalização selvagem" e a busca de uma também difusa "globalização saudável".
Como na primeira versão (2001), ele se deu em paralelo ao Fórum Econômico Mundial, tradicionalmente realizado em Davos (Suíça), mas neste ano ocorrido em Nova York. Ali se reúnem há três décadas líderes políticos e econômicos e intelectuais.
Constatação óbvia: em Porto Alegre, os insatisfeitos com a ordem mundial; nos EUA, os senhores do mundo, preocupados, e seus teóricos.
Só que a coisa não pode ser tratada de modo tão simples assim.
Em especial o FSM, por ser fenômeno novo -uma babel com mais de 51 mil participantes de 131 países, 4.900 organizações, centenas de oficinas, reuniões, palestras- , exigia um modelo igualmente novo de cobertura.

Sem o essencial
A Folha mostrou críticas ao PT por usurpar o fórum com fins eleitorais; trouxe entrevistas com intelectuais ou ativistas; ressaltou os aspectos de feira e circo que o evento abrigava; as manifestações públicas (invasões de prédio pelo MST, passeatas), os acordos políticos ou as rivalidades já preexistentes (como no caso da crise do PT gaúcho); publicou comentários críticos ao evento. Tudo bem.
Mas os leitores do jornal não foram informados, ao menos até a sexta-feira, a respeito do mais importante: os assuntos e as propostas ali debatidos.
Em carta publicada na segunda-feira, um leitor reclamava: "Talvez a Folha devesse prestigiar de maneira mais séria as discussões de alto nível realizadas na cidade".
O editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva, discorda dessa visão. Em contestação a crítica interna que fiz a partir da edição da quarta, ele afirma:
"O problema, mais complexo, é que essa insatisfação assume hoje formas variadas e se presta a interesses, discursos e atitudes pulverizados, anômicos. Daí a dificuldade de discutir as "idéias" do fórum. Elas não existem da maneira como o ombudsman gostaria que existissem. O fórum é um composto de ONGs propondo coisas (neste ano foram mais de 700 oficinas, que funcionam como mônadas, cada uma voltada para a discussão de seus projetos), de estrelas intelectuais fazendo palestras, de vitrine eleitoral para políticos e de movimentos sociais criando factóides anticapitalistas".
Difícil afirmar se as discussões na capital gaúcha foram ou não de "alto nível", pois a Folha -como a maior parte da imprensa- trouxe precária informação a esse respeito, afora os temas Alca e criação de um tribunal penal internacional. E esse é o problema.
Talvez desaparelhado para a cobertura de um evento tão fluido, o jornal perdeu a oportunidade de penetrar no coração impalpável do fórum, nem que fosse para demonstrar sua eventual inocuidade. Restringiu-se aos entornos das manobras e ao exotismo.
Afetado por essa fragilidade na cobertura, acabou lhe dando, no auge, um tratamento cômico ("Saramago azeda a festa; e a esquerda dança", esse foi o título da principal reportagem do encerramento do fórum), tendendo a desqualificá-lo como campo de debate de alternativas.
Se o fizesse em editoriais ou em análises, ainda faria sentido -questão de opinião. Mas não no noticiário, que deve apresentar os fatos e tentar ser, como tantas vezes o próprio jornal prega, isento, imparcial.
O FSM pode não se ter constituído em laboratório de grandes soluções para os problemas do mundo, mas isso não autoriza a Folha a se travestir de "Casseta & Planeta".



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