São Paulo, domingo, 11 de abril de 1999
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Diário da máfia

RENATA LO PRETE
Entre erros e acertos, a Folha vem procurando mostrar que enfim se recupera da negligência com que inicialmente tratou o noticiário da chamada máfia da propina.
O jornal trouxe, em especial nas últimas duas semanas, algumas reportagens que revelam disposição para investigar a fundo o esquema que tomou conta da prefeitura paulistana, em vez de se dar por satisfeito colecionando casos de fiscais corruptos e detalhes da vida amorosa de vereadores.
Na edição de quarta-feira passada, o mais recente desses esforços resultou na identificação do motorista de Nicéa Pitta entre as pessoas que recebem salário do Anhembi sem trabalhar na empresa, um dos cabides de emprego da administração municipal.
É preciso, no entanto, que a Folha não se deite sobre o que já conseguiu. Os buracos na cobertura ainda são muitos.
Um exemplo é a mal contada história do dossiê que Celso Pitta entregou na quinta-feira ao Ministério Público.
Essa coleção de papéis começou a semana nas manchetes, com um amigo-advogado do prefeito anunciando que este se libertara do malufismo e entregaria o ex-chefe.
Mais do que depressa, Pitta esvaziou a declaração e a expectativa em torno do dossiê.
Quatro dias depois, o caso estava na metade inferior da página e o amigo-advogado havia sumido do jornal.
O leitor ficou sem entender se Pitta de fato pretendia atirar Maluf aos promotores, mas recuou, ou se havia algum outro tipo de negociação em curso.
Há nesse noticiário um mundo de bastidores políticos que a Folha até agora mal arranhou. Ele inclui tratativas reservadas entre Maluf e Pitta e costuras no PFL para formar o governo de Régis de Oliveira caso venha o impeachment.
O leitor pouco sabe de tudo isso. É bem possível que os jornalistas, em tese encarregados de contar a história, estejam na mesma situação.

A Folha não fez serviço completo nem no melhor momento de sua reportagem até agora, que foi o mapeamento de outro cabide de empregos da prefeitura, a Prodan.
Outros jornais já haviam relatado casos de irregularidades na folha de pagamentos da empresa, que presta serviços na área de informática.
O "Diário Popular" chegara a publicar uma relação de funcionários.
Mas a Folha foi além. Conseguiu uma lista onde apareciam cargos de confiança que haviam sido expurgados da versão anterior.
Em vez de simplesmente atirar a penca de nomes sobre o leitor, o jornal realizou um cuidadoso trabalho de edição, selecionando os personagens relevantes e identificando suas relações de parentesco e/ou apadrinhamento político.
Da pescaria saíram, entre outros, quatro secretários municipais, o ex-secretário (agora indiciado) Alfredo Mário Savelli, o ex-vice-prefeito Sólon Borges dos Reis, subordinados da primeira-dama e ex-funcionários de administrações regionais.
Em resumo, "homens de Pitta, Maluf e até envolvidos na máfia", como dizia o título da reportagem, publicada no dia 31 de março.
Todo esse empenho elucidativo desapareceu na edição seguinte, quando a Folha informou que havia descoberto três funcionários da Prodan cedidos ao Instituto de Previdência Municipal, onde eram "fantasmas".
Embora frisasse que os três eram "muito bem remunerados", o jornal se limitou a despejar seus nomes em um texto no pé da página: Luiz Fernando de Oliveira Campos, Denise Tamanaha e Patrícia Sales R. Gonçalves.
Em contraste com o que foi feito no dia anterior, não se esclareceu quem são essas pessoas e que esquema permitiu que recebessem sem trabalhar.
A Folha ficou devendo informações a seu leitor.
Ele só confiará na disposição investigativa do jornal se os resultados desse trabalho atingirem indistintamente todos os envolvidos em irregularidades.
Se não for assim, o leitor poderá se perguntar se o jornal não pratica a mesma encenação de que são acusadas a CPI e outras instâncias condutoras das apurações.

Não é fácil se livrar de uma obsessão, o que pode ser constatado pelo espaço que a Folha ainda desperdiça com detalhes do romance entre o vereador Vicente Viscome e sua ex-assessora Tânia de Paula.
O assunto já envelheceu como piada, que dirá como notícia, mas o jornal não desiste.
Na terça-feira, tomou emprestada uma entrevista com Tânia feita pelo "Notícias Populares", jornal do mesmo grupo que edita a Folha.
No pingue-pongue, ela respondia questões como: "Você está com saudades? Quer ver e abraçar o Viscome? E o sexo, era bom?"
Pode parecer moralismo, mas o problema é de outra natureza. Diz respeito ao fato de que a Redação por vezes ignora que tipo de jornal faz, e para que leitor.
Indica também que talvez a Folha ainda não saiba direito o que está procurando no escândalo da máfia.

Desculpem o nosso furo

Está na hora de a Folha refletir sobre como vem editando o "outro lado" de reportagens de alguma forma embaraçosas para os poderosos.
Para falar logo no mais trovejante deles, tomo como exemplo a história de que Antonio Carlos Magalhães tem 11 parentes ocupando cargos públicos na Bahia.
A reportagem, corretamente acompanhada de um texto em que o presidente do Congresso era ouvido e minimizava as constatações do jornal, foi publicada na quinta-feira.
Fazê-la foi uma providência acertada, seja para oferecer um contraponto à cruzada do senador contra a corrupção e o nepotismo no Poder Judiciário, seja para escapar um pouco do servilismo incondicional e festivo que marca as relações da imprensa com ACM.
No dia seguinte veio um novo "outro lado", desta vez em alto de página. Até aí, tudo mais ou menos compreensível, dada a importância do personagem da notícia.
O que incomodava, no entanto, era o tom do texto.
Verborragia à parte, as declarações de ACM não derrubavam nenhuma das informações reveladas pela Folha.
Apesar disso, o texto praticamente não defendia o que foi publicado, limitando-se a empilhar aspas em que o senador atacava o jornal.
A Folha nem ao menos lembrou o número de parentes que havia descoberto, como se pedisse desculpas pelo que escreveu.
Não é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece.
Há algumas semanas houve o caso de Paulo Maluf e sua alegada filha.
Um dia depois de noticiar com destaque a acusação do suposto avô (devidamente acompanhada da negativa de assessor do ex-prefeito), o jornal deu praticamente a capa inteira do caderno São Paulo para Maluf se defender e atacar adversários.
Se o espaço exagerado era, até certo ponto, tolerável diante da gravidade da acusação, o mesmo não pode ser dito do caráter dos textos reunidos na página.
Como no episódio de ACM, eram filiados à escola de jornalismo "ligue o gravador e deixe falar".
No dia seguinte, o jornal passou pelo constrangimento de ver o "Estado" tirar Maluf do sério em sua entrevista, na qual o ex-prefeito soltou a declaração que precipitou a saída de Celso Pitta do PPB.
"Outro lado" é importante. Basta que não engula os demais.






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