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Jornalismo nocauteado
No episódio dos boxeadores cubanos pareceu haver opinião demais e informação de menos. E precipitação, ao dar status de fato a uma suposição
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NO FINZINHO da noite
do primeiro sábado do
Pan, o repórter Paulo
Cobos chegou a um restaurante na Barra da Tijuca para
compartilhar um risoto de camarão com dois colegas da Folha. Não deram conta nem de
metade da travessa.
Cobos foi o que menos comeu -quem sabe "aplacara" a
fome com um "furo" enviado
pouco antes para São Paulo: a
deserção do primeiro atleta
cubano, um jogador de handebol. Bom começo de cobertura
sobre a delegação caribenha.
Depois, com o sumiço de um
técnico de ginástica e de uma
dupla de notáveis boxeadores,
Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, o jornal estampou
entrevista exclusiva com um
promotor de lutas na Alemanha que contava ter contratado os campeões.
O autor foi o repórter
Eduardo Ohata, ex-boxeur
amador cujo currículo soma,
em três combates, três derrotas por nocaute técnico. Fidel
Castro citou o novo "furo" no
diário oficial "Granma".
Na reta final da competição,
a Folha baixou a guarda. Publicou que na canoagem houve "mais um cubano tentando
arrumar confusão". Qual cubano, que confusão, por que
mais um? Não respondeu.
O embarque de parte da
equipe foi tratado como "debandada" causada por "rumores de deserção em massa".
Ocorre que não faltou chance de fuga, nas romarias que
os cubanos fizeram ao comércio popular do Rio.
Na crítica diária de 30 de julho (disponível em www.folha.com.br/ombudsman),
elenquei pontos de inconsistência nas reportagens.
Escrevi: "O que condeno é, a
essa altura do século 21, a
ideologização de cobertura esportiva com base em premissas editoriais, de opinião".
Com o reaparecimento de
Lara e Rigondeaux, a viagem-relâmpago e a transparência
anêmica das autoridades brasileiras, a opinião veio a se sobrepor aos fatos na Folha.
Informação de menos
Na quarta, o editorial "Direitos nocauteados" afirmou
que o governo "violou" a Constituição e o direito de asilo. Sobre a hipótese de "operação
rotineira de repatriamento",
assestou: "Esse seria o caso de
os atletas cubanos de fato desejarem voltar para seu país
[...]. As circunstâncias da deportação, entretanto, fazem
dessa hipótese uma espécie de
conto da carochinha".
Prosseguiu: os desportistas
"foram mantidos incomunicáveis". Lamentou que eles não
tiveram "contato com representantes de instituições independentes, como [...] OAB, o
Ministério Público [...]". "Se
tais entrevistas tivessem ocorrido, ao menos não haveria dúvidas quanto à real disposição
dos atletas de voltar".
Até então o noticiário focara
os depoimentos à PF, o bate-boca entre governistas e opositores e o simulacro jornalístico do "Granma".
Uma admirável reportagem
do jornal carioca "Extra" reconstituiu, na quinta, as quase
duas semanas da farra em liberdade. Além de testemunhos sobre a fartura de picanha e pistoleiras, o jornal conversou com o salva-vidas e o
pescador a quem os lutadores
apelaram para chamar a polícia, a fim de regressar a Cuba.
Pelo que se sabe hoje, inexistiu pedido de asilo. Representantes da OAB e do Ministério Público estiveram com
os estrangeiros e ouviram a
vontade de "volver".
Não é papel do ombudsman
discutir o mérito de posições
editoriais. É legítimo que o
jornal as tenha e as divulgue.
Nesse episódio, porém, pareceu haver opinião demais em
contraste com informação de
menos. E precipitação, ao conferir status de fato ao que era
suposição. Desde a controversa "debandada", o espaço opinativo aparentou influenciar o
noticioso.
Os leitores ganhariam se a
Folha tivesse demonstrado na
apuração da história a mesma
determinação que exibiu ao
opinar quando os fatos ainda
aconselhavam prudência.
Persistem mistérios a investigar: a ruptura dos pugilistas
com os alemães; eventuais
ações comuns dos governos
aliados de Brasil e Cuba contra
fugitivos e agenciadores; por
que a PF, de modo obscuro,
afastou a imprensa; as ameaças da polícia política fidelista
às famílias dos rebeldes; e
muito mais.
O compromisso com os fatos não relativiza a evidência
de que o regime cubano é uma
ditadura de partido único na
qual se proíbem sindicatos e
empresas independentes, greves, jornais autônomos, livros,
acesso à internet e onde quem
grita "Fora, Fidel" vai em cana.
Os boxeadores têm o direito
de tentar a sorte onde bem entenderem. Dói imaginar seu
futuro fora dos ringues, como
"arrependidos" -humilhação
que a ditadura militar brasileira impôs a adversários "convencendo" pelo pau-de-arara.
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Mário Magalhães é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2007. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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