São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2007

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Jornalismo nocauteado


No episódio dos boxeadores cubanos pareceu haver opinião demais e informação de menos. E precipitação, ao dar status de fato a uma suposição

NO FINZINHO da noite do primeiro sábado do Pan, o repórter Paulo Cobos chegou a um restaurante na Barra da Tijuca para compartilhar um risoto de camarão com dois colegas da Folha. Não deram conta nem de metade da travessa.
Cobos foi o que menos comeu -quem sabe "aplacara" a fome com um "furo" enviado pouco antes para São Paulo: a deserção do primeiro atleta cubano, um jogador de handebol. Bom começo de cobertura sobre a delegação caribenha.
Depois, com o sumiço de um técnico de ginástica e de uma dupla de notáveis boxeadores, Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, o jornal estampou entrevista exclusiva com um promotor de lutas na Alemanha que contava ter contratado os campeões.
O autor foi o repórter Eduardo Ohata, ex-boxeur amador cujo currículo soma, em três combates, três derrotas por nocaute técnico. Fidel Castro citou o novo "furo" no diário oficial "Granma".
Na reta final da competição, a Folha baixou a guarda. Publicou que na canoagem houve "mais um cubano tentando arrumar confusão". Qual cubano, que confusão, por que mais um? Não respondeu.
O embarque de parte da equipe foi tratado como "debandada" causada por "rumores de deserção em massa".
Ocorre que não faltou chance de fuga, nas romarias que os cubanos fizeram ao comércio popular do Rio.
Na crítica diária de 30 de julho (disponível em www.folha.com.br/ombudsman), elenquei pontos de inconsistência nas reportagens.
Escrevi: "O que condeno é, a essa altura do século 21, a ideologização de cobertura esportiva com base em premissas editoriais, de opinião".
Com o reaparecimento de Lara e Rigondeaux, a viagem-relâmpago e a transparência anêmica das autoridades brasileiras, a opinião veio a se sobrepor aos fatos na Folha.

Informação de menos
Na quarta, o editorial "Direitos nocauteados" afirmou que o governo "violou" a Constituição e o direito de asilo. Sobre a hipótese de "operação rotineira de repatriamento", assestou: "Esse seria o caso de os atletas cubanos de fato desejarem voltar para seu país [...]. As circunstâncias da deportação, entretanto, fazem dessa hipótese uma espécie de conto da carochinha".
Prosseguiu: os desportistas "foram mantidos incomunicáveis". Lamentou que eles não tiveram "contato com representantes de instituições independentes, como [...] OAB, o Ministério Público [...]". "Se tais entrevistas tivessem ocorrido, ao menos não haveria dúvidas quanto à real disposição dos atletas de voltar".
Até então o noticiário focara os depoimentos à PF, o bate-boca entre governistas e opositores e o simulacro jornalístico do "Granma".
Uma admirável reportagem do jornal carioca "Extra" reconstituiu, na quinta, as quase duas semanas da farra em liberdade. Além de testemunhos sobre a fartura de picanha e pistoleiras, o jornal conversou com o salva-vidas e o pescador a quem os lutadores apelaram para chamar a polícia, a fim de regressar a Cuba.
Pelo que se sabe hoje, inexistiu pedido de asilo. Representantes da OAB e do Ministério Público estiveram com os estrangeiros e ouviram a vontade de "volver".
Não é papel do ombudsman discutir o mérito de posições editoriais. É legítimo que o jornal as tenha e as divulgue. Nesse episódio, porém, pareceu haver opinião demais em contraste com informação de menos. E precipitação, ao conferir status de fato ao que era suposição. Desde a controversa "debandada", o espaço opinativo aparentou influenciar o noticioso.
Os leitores ganhariam se a Folha tivesse demonstrado na apuração da história a mesma determinação que exibiu ao opinar quando os fatos ainda aconselhavam prudência.
Persistem mistérios a investigar: a ruptura dos pugilistas com os alemães; eventuais ações comuns dos governos aliados de Brasil e Cuba contra fugitivos e agenciadores; por que a PF, de modo obscuro, afastou a imprensa; as ameaças da polícia política fidelista às famílias dos rebeldes; e muito mais.
O compromisso com os fatos não relativiza a evidência de que o regime cubano é uma ditadura de partido único na qual se proíbem sindicatos e empresas independentes, greves, jornais autônomos, livros, acesso à internet e onde quem grita "Fora, Fidel" vai em cana.
Os boxeadores têm o direito de tentar a sorte onde bem entenderem. Dói imaginar seu futuro fora dos ringues, como "arrependidos" -humilhação que a ditadura militar brasileira impôs a adversários "convencendo" pelo pau-de-arara.


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