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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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OMBUDSMAN

Sem investigação

BERNARDO AJZENBERG

Além de ter um extraordinário potencial explosivo na política, a retomada do chamado "caso Santo André" (sequestro e morte do prefeito Celso Daniel) suscita, para o jornalismo, uma importante reflexão.
Remonto ao caso de PC Farias, tesoureiro de campanha e homem de absoluta confiança do ex-presidente Fernando Collor.
Como se recorda, PC foi achado morto numa casa de veraneio em 1996. Conclusão oficial: ele foi assassinado pela namorada, a qual, em seguida, cometeu suicídio. E ficou por isso mesmo.
Entre março e maio de 1999, após meses de investigação jornalística, a Folha publicou uma série de reportagens, com documentos e fotos inéditas, que derrubou a versão oficial e forçou uma reabertura das apurações.
Ela resultou de um esforço deliberado e paciente do jornal, na contramão do "consenso" formado sobre a morte de PC.
Voltando a Santo André...
Desde o assassinato de Daniel, em janeiro de 2002, até abril daquele ano, o assunto se manteve na pauta quase cotidianamente.
O empresário Sérgio Gomes da Silva -hoje considerado réu sob a acusação de ser mandante do sequestro e do assassinato do prefeito em denúncia da Promotoria acolhida pela Justiça- foi de imediato, mesmo sem provas, massacrado pela mídia como um todo, com raras exceções.
Encerrado o inquérito da Polícia Civil - que concluiu tratar-se de um crime comum- e feita pelo Ministério Público, com base nele, uma denúncia contra seis pessoas que formariam uma quadrilha reunida em torno da favela Pantanal, o "interesse" pelo crime em si arrefeceu.
Ganhou visibilidade, então, o outro lado do caso: um suposto esquema de propina na prefeitura de Santo André que, além de enriquecer pessoas ilicitamente (Silva dentre elas), drenaria recursos para campanhas do PT.
Em julho de 2002, porém, após o Supremo Tribunal Federal rejeitar uma representação do Ministério Público contra o então presidente do partido, José Dirceu, também esse lado declinou -ao menos para a imprensa-, ressurgindo apenas brevemente meses depois, pouco antes da eleição presidencial, quando promotores denunciaram Silva, mais cinco pessoas, no caso das supostas propinas. Lula eleito, tudo praticamente desapareceu.

Ímpeto
Jornalista não é policial, promotor, fiscal nem juiz. O exemplo do caso de PC Farias deixa claro, no entanto, que, com seus próprios meios, dentro de seus limites de atuação, a imprensa pode abrir o caminho para elucidar interrogações que, se não ficam expostas necessariamente nos autos formais, permanecem na cabeça de muita gente.
Pois foi justamente esse ímpeto investigativo que faltou ao jornalismo no caso Santo André.
Tivesse a Folha reproduzido aqui o investimento de tempo e pessoal aplicado no exemplo de PC, o jornal e seus leitores no mínimo não teriam sido pegos de surpresa, como ocorreu, com a nova denúncia da Promotoria.
O ressurgimento do caso -quanto ao assassinato de Daniel- se deu nas edições de 26/11 do "Globo" e do "Estado de S.Paulo". Ambos noticiaram que Silva fora interrogado no dia anterior pelo Ministério Público, sendo pela primeira vez considerado suspeito de participar diretamente do crime.
Nos dias seguintes, novas informações em jornais e revistas. Na Folha, nada: à surpresa, parece, seguiu-se uma letargia. O jornal só veio a registrar a retomada na edição do último dia 2.
Desde então, além de noticiar novos fatos e entrevistar pessoas neles envolvidas, vem disputando com a concorrência a primazia na revelação de detalhes apurados pela Promotoria -algo semelhante ao que ocorre com relação à Operação Anaconda (em cuja "pré-história", cabe registrar, estão reportagens investigativas exemplares da Folha, também de 99, sobre sinais de enriquecimento ilícito de desembargadores paulistas).
Isso tudo é indispensável e exige muito trabalho, claro, mas ainda parece menos do que deve almejar um jornalismo cuja pretensão consiste em atuar, não a reboque, mas de modo independente, paralelo às instituições oficiais (como a Polícia Federal ou a Promotoria).
Justamente do terreno dessas investigações próprias, acredito, é que pode brotar a real diferença entre os jornais.
Não está em jogo, aqui, a competência individual. Apurar casos de corrupção é tarefa difícil, demorada, complexa, e a Folha deslocou nas últimas semanas, para os casos Anaconda e Santo André, alguns de seus melhores e mais experientes repórteres.
O problema é outro, reincidente: quando um evento está sob os holofotes, a imprensa mergulha nele com tudo, envia para o cenário os quadros mais brilhantes, para em seguida, silenciosamente, abandoná-lo. Assim foi com o caso Santo André, o qual, no entanto, continuou a prosperar, "esquecido", na sombra.
Gomes da Silva pode ser inocente ou não. O esquema de propinas e sua vinculação com o PT podem existir ou não. Cabe à Justiça decidir.
Mas uma coisa é certa: será um retrocesso, para a imprensa, continuar apenas a reboque, sem manejar, a partir de sua própria iniciativa, os instrumentos investigativos de que dispõe.
É esse o maior desafio que a reviravolta do caso Santo André -mérito da Promotoria, acionada pela família de Daniel- recoloca para o jornalismo.


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