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Efeito boiada e operação tartaruga
Uma deficiência jornalística é se associar a relatos sem o devido senso crítico; basta observar o vídeo com atenção para constatar que não há envelope
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Não sei se o ex-ministro Silas Rondeau é ladrão.
Ou, melhor dizendo, se ele
recebeu propina da empreiteira Gautama quando dirigia a
pasta de Minas e Energia.
A Polícia Federal suspeita
que Rondeau tenha embolsado suborno de R$ 100 mil, em
troca de facilidades no programa Luz Para Todos. Ele nega.
No dia 21 de maio, a Folha
noticiou o conteúdo de um vídeo do circuito interno do ministério. A PF o obteve na investigação sobre fraudes em
obras públicas que resultou na
Operação Navalha.
O jornal afirmou: "As imagens mostram uma funcionária da Gautama, Fátima Palmeira, entrando no ministério
pelo elevador privativo no dia
13 de março deste ano. Ela
carrega um envelope de cor
parda, no qual a PF acredita
que estavam R$ 100 mil".
Prosseguiu o texto: "Diretora financeira da Gautama, ela
se dirige até o andar do gabinete de Silas Rondeau. Lá, encontra-se com o assessor do
ministro Ivo Almeida Costa,
preso na Operação Navalha.
Meia hora depois, as imagens
registram a saída de Fátima e
de Ivo do gabinete. Aí, quem
está de posse do envelope é o
assessor".
Perguntei, e a Redação informou que teve acesso às
imagens "com uma fonte". Na
véspera, o programa "Fantástico" as havia exibido com ineditismo e as descrito de modo
semelhante ao do jornal -a rigor, de boa parte dos jornais-
no dia seguinte.
O tal envelope ganhou destaque desproporcional na detalhada apuração da polícia. A
PF acompanhou o saque em
agência bancária, testemunhou encontros, interceptou
telefonemas tratando de dinheiro e da incursão da diretora da Gautama por uma entrada discreta do prédio público. Seria estranho que focasse
um envelope, e não a bolsa de
razoável dimensão nos braços
da visitante.
O ministro pediu demissão
em 22 de maio, inexistindo
prova conclusiva contra si,
embora os indícios estejam
longe de ser desprezíveis.
Laudo
No fim de semana passado, a
revista "Carta Capital" divulgou laudo encomendado pela
defesa de Ivo Costa, ex-assessor de Rondeau. O perito Ricardo Molina de Figueiredo
sustenta que não havia envelope com Fátima e que Ivo
Costa tinha nas mãos uma folha branca de papel.
No sábado retrasado, o "Jornal Nacional" veiculou reportagem descrevendo a perícia.
Na segunda, a Folha titulou:
"PF não afasta suspeita sobre
ex-ministro".
Contou que, "de acordo com
a investigação da Polícia Federal, [o dinheiro da propina]
foi [levado] ao ministério na
bolsa da diretora financeira
[...]" da construtora.
O jornal não lembrou ter
bancado a impressão original
da PF. Mais grave, reafirmou
que havia envelope com Fátima Palmeira e Ivo Costa. Disse que Molina "concluiu não
ser possível colocar R$ 100
mil num envelope como o das
imagens", quando o laudo vai
muito além: nega haver envelope e afirma que, além da bolsa, Fátima levava apenas um
celular e "uma espécie de livro
com capa escura".
Resolvi checar: na internet,
vi e revi o vídeo transmitido
pela TV Globo, o mesmo analisado por Molina.
Não identifiquei envelope
com a representante da Gautama. Com o ex-assessor, há
na mão um objeto branco que
aparenta ser de fato uma folha
de papel. Esquadrinhei o laudo, que parece fiel às imagens.
O que o laudo não diz: o volume estimado pelo próprio estudo para um pacote com mil
notas de R$ 100 caberia na
bolsa feminina.
Para a Redação, a reportagem de maio foi correta: "[A
Folha] recebeu a informação
de fonte qualificada e teve
acesso a um pen drive com as
imagens. Nelas, Fátima carrega um volume sob o braço, que
parece ser um envelope de cor
parda, e o assessor também
carrega um papel".
"É argumentável, como a
perícia depois indicou, que
não eram envelopes suficientemente grandes para carregar R$ 100 mil, mas a imagem
não permite dizer isso. Como a
imagem foi analisada em off
dos investigadores do caso, foi
colocada a versão de que "a PF
suspeita"." A Redação continua a insistir: "Há um objeto
na mão da assessora que pode
ser um envelope".
Uma deficiência do jornalismo é se associar a algumas
versões sem o devido senso
crítico. Basta observar o vídeo
com atenção para constatar
que ele não mostra envelope,
pardo ou de qualquer cor.
Ainda que agentes da Polícia
Federal dissessem que sim, o
jornal não deveria subscrever
o engano.
Na hora de reportar suspeitas e acusações, nós jornalistas
obedecemos a um certo efeito
boiada: um dispara, os outros
correm atrás e ecoam.
Quando se trata de corrigir
ou recuar, impõe-se uma operação tartaruga, atávica, muitas vezes involuntária. Quem
perde são os leitores.
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