São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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Efeito boiada e operação tartaruga


Uma deficiência jornalística é se associar a relatos sem o devido senso crítico; basta observar o vídeo com atenção para constatar que não há envelope

Não sei se o ex-ministro Silas Rondeau é ladrão.
Ou, melhor dizendo, se ele recebeu propina da empreiteira Gautama quando dirigia a pasta de Minas e Energia.
A Polícia Federal suspeita que Rondeau tenha embolsado suborno de R$ 100 mil, em troca de facilidades no programa Luz Para Todos. Ele nega.
No dia 21 de maio, a Folha noticiou o conteúdo de um vídeo do circuito interno do ministério. A PF o obteve na investigação sobre fraudes em obras públicas que resultou na Operação Navalha.
O jornal afirmou: "As imagens mostram uma funcionária da Gautama, Fátima Palmeira, entrando no ministério pelo elevador privativo no dia 13 de março deste ano. Ela carrega um envelope de cor parda, no qual a PF acredita que estavam R$ 100 mil".
Prosseguiu o texto: "Diretora financeira da Gautama, ela se dirige até o andar do gabinete de Silas Rondeau. Lá, encontra-se com o assessor do ministro Ivo Almeida Costa, preso na Operação Navalha. Meia hora depois, as imagens registram a saída de Fátima e de Ivo do gabinete. Aí, quem está de posse do envelope é o assessor".
Perguntei, e a Redação informou que teve acesso às imagens "com uma fonte". Na véspera, o programa "Fantástico" as havia exibido com ineditismo e as descrito de modo semelhante ao do jornal -a rigor, de boa parte dos jornais- no dia seguinte.
O tal envelope ganhou destaque desproporcional na detalhada apuração da polícia. A PF acompanhou o saque em agência bancária, testemunhou encontros, interceptou telefonemas tratando de dinheiro e da incursão da diretora da Gautama por uma entrada discreta do prédio público. Seria estranho que focasse um envelope, e não a bolsa de razoável dimensão nos braços da visitante.
O ministro pediu demissão em 22 de maio, inexistindo prova conclusiva contra si, embora os indícios estejam longe de ser desprezíveis.

Laudo
No fim de semana passado, a revista "Carta Capital" divulgou laudo encomendado pela defesa de Ivo Costa, ex-assessor de Rondeau. O perito Ricardo Molina de Figueiredo sustenta que não havia envelope com Fátima e que Ivo Costa tinha nas mãos uma folha branca de papel.
No sábado retrasado, o "Jornal Nacional" veiculou reportagem descrevendo a perícia. Na segunda, a Folha titulou: "PF não afasta suspeita sobre ex-ministro".
Contou que, "de acordo com a investigação da Polícia Federal, [o dinheiro da propina] foi [levado] ao ministério na bolsa da diretora financeira [...]" da construtora.
O jornal não lembrou ter bancado a impressão original da PF. Mais grave, reafirmou que havia envelope com Fátima Palmeira e Ivo Costa. Disse que Molina "concluiu não ser possível colocar R$ 100 mil num envelope como o das imagens", quando o laudo vai muito além: nega haver envelope e afirma que, além da bolsa, Fátima levava apenas um celular e "uma espécie de livro com capa escura".
Resolvi checar: na internet, vi e revi o vídeo transmitido pela TV Globo, o mesmo analisado por Molina.
Não identifiquei envelope com a representante da Gautama. Com o ex-assessor, há na mão um objeto branco que aparenta ser de fato uma folha de papel. Esquadrinhei o laudo, que parece fiel às imagens. O que o laudo não diz: o volume estimado pelo próprio estudo para um pacote com mil notas de R$ 100 caberia na bolsa feminina.
Para a Redação, a reportagem de maio foi correta: "[A Folha] recebeu a informação de fonte qualificada e teve acesso a um pen drive com as imagens. Nelas, Fátima carrega um volume sob o braço, que parece ser um envelope de cor parda, e o assessor também carrega um papel".
"É argumentável, como a perícia depois indicou, que não eram envelopes suficientemente grandes para carregar R$ 100 mil, mas a imagem não permite dizer isso. Como a imagem foi analisada em off dos investigadores do caso, foi colocada a versão de que "a PF suspeita"." A Redação continua a insistir: "Há um objeto na mão da assessora que pode ser um envelope".
Uma deficiência do jornalismo é se associar a algumas versões sem o devido senso crítico. Basta observar o vídeo com atenção para constatar que ele não mostra envelope, pardo ou de qualquer cor.
Ainda que agentes da Polícia Federal dissessem que sim, o jornal não deveria subscrever o engano.
Na hora de reportar suspeitas e acusações, nós jornalistas obedecemos a um certo efeito boiada: um dispara, os outros correm atrás e ecoam.
Quando se trata de corrigir ou recuar, impõe-se uma operação tartaruga, atávica, muitas vezes involuntária. Quem perde são os leitores.


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