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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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OMBUDSMAN

Dúvidas no ar

BERNARDO AJZENBERG

Uma das diferenças entre jornalismo e literatura é que esta última pode se enriquecer com o uso de frases difusas, ambíguas, elementos imprecisos que a mente do leitor se encarrega de fruir a seu modo, pessoal e intransferível. Por isso, mais do que o autor, é o leitor quem "faz" o livro de ficção.
O noticiário jornalístico requer o contrário: o detalhe delineado, exatidão, a reprodução a mais fiel possível dos acontecimentos. O máximo de informação concreta para um mínimo de afirmações generalizantes. Quando patina na incompletude, ele se empobrece, informa mal.
Dois assuntos, na semana, foram vítimas dessa abordagem que, ao dizer tanto, acaba não dizendo nada -ou, pior, deixa no ar muitas interrogações.
Na edição de quarta-feira (13), uma "Panorâmica" intitulada "Alunos da USP apóiam greve dos professores" informava que a mobilização dos docentes daquela universidade obtivera o "apoio formal dos alunos da graduação e da pós-graduação".
Acrescentava o que cada um desses grupos pretendia fazer (discussão de seus próprios problemas, panfletagens, manifestações etc) e concluía afirmando que participariam de uma passeata na sexta-feira.
Aparentemente, nada demais. Pergunto, no entanto, como fiz em crítica interna: o que quer dizer "apoio formal"? Houve alguma assembléia estudantil? Foi representativa? Quantos estudantes teriam participado dela? A votação teria sido unânime? De qual greve se está falando? Qual a reivindicação dos docentes? Quantos deles estão parados? O que dizem as entidades?
O texto não contemplava essas interrogações básicas.
Na sexta, nova reportagem sobre o assunto -"Professores da USP de Ribeirão Preto aderem à greve"- afirmava que essa adesão fora definida em assembléia e que, em outra assembléia, os docentes da USP tinham decidido manter a greve iniciada na segunda. Tudo assim, sem detalhes. E acabava numa citação: "Para o diretor da Adusp (associação dos docentes) Cesar Minto, o movimento cresceu". Ponto.
Sob outra forma, o mesmo problema de fundo -a fragilidade das afirmações tão contundentes quanto precárias por sua generalidade- surgiu no texto "Igrejas evangélicas auxiliam imigrantes ilegais", reportagem acoplada a outra, na capa de Cotidiano de sexta, sobre a prisão de brasileiros que trabalhavam ilegalmente no Reino Unido.
Início do texto: "As igrejas evangélicas brasileiras são o principal ponto de apoio para os brasileiros que moram no exterior. Desde que chegam aos Estados Unidos ou aos principais países da Europa ocidental, os brasileiros recebem todo tipo de apoio dessas igrejas, inclusive para alimentação e moradia".
Mais adiante: "O apoio dos evangélicos é dado apara qualquer pessoa, independentemente da religião. Com isso, muitos se convertem ao pentecostalismo ao enfrentarem as primeiras dificuldades no exterior".
Na crítica interna, indaguei: há alguma estatística, alguma observação empírica consistente capaz de dar base a tão amplas e tão afirmativas generalizações? Pode até ser tudo verdade, mas o texto, pelo menos, não o demonstrava. Apenas dois exemplos concretos eram mencionados: Boston (EUA) e Zurique (Suíça).
Além da formulação genérica ou da informação precária, esse tipo de confecção de reportagens embute um risco maior: o de prestar-se -apesar da provável intenção em sentido contrário- como divulgador, tal qual um press release "disfarçado", de afirmações taxativas que interessam, sobretudo, a esse ou àquele grupo envolvido em dada questão ou certo acontecimento.
Nada mais distante de um jornalismo que se queira imparcial, preciso e informativo do que o papel de simples mensageiro.



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