São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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OMBUDSMAN

O peixe fora do aquário

Lalo de Almeida-20.abr.2004/Folha Imagem


MARCELO BERABA

Observe bem a foto acima. Ela mostra um peixe fisgado nas águas poluídas da represa de Guarapiranga, na zona sul de São Paulo. Foi feita pelo repórter-fotográfico Lalo de Almeida e publicada na capa da Folha do dia 21 de abril para ilustrar a reportagem "Qualidade da água tem piora em São Paulo".
A foto mostra a cor forte da água e tem um ângulo inusitado. O homem que pesca ao fundo parece estar com água pela cintura. Há pingos na imagem e uma mancha do lado direito que parece indicar um reflexo. Ela capta a idéia da poluição e consegue fugir do convencional.
O leitor Delvino Nunes, no entanto, ficou cismado. E escreveu para o ombudsman, um pouco indignado. "Num primeiro momento, ao olhar para a foto, fiquei impressionado com a plástica, assim como com a criatividade. Porém, ao tentar entender o ângulo do fotógrafo, cheguei à seguinte conclusão: ou ele estava dentro da represa, ou ele forjou a foto. Até que seja convencido do contrário, fico com a segunda conclusão e explico. Bem ao lado direito do peixe há um reflexo, provavelmente do fotógrafo. O que me leva a concluir que o peixe não estava na água, mas dentro de um aquário, daí o reflexo. Há até bolhas de ar no vidro do aquário (ou da lente quase submersa!!)."
Todos nós conhecemos casos de manipulação de fotografias em jornais e revistas. É fácil, com os recursos de que os departamentos de Arte e de Fotografia dispõem, alterar uma foto.
Um exemplo recente famoso ocorreu na edição do atentado terrorista de 11 de março em Madri. Uma das imagens mais fortes, reproduzida por quase todos os jornais do mundo, mostrava vítimas sendo atendidas ainda na linha do trem. Logo em primeiro plano, aparecia um pedaço de corpo humano. É uma foto de muito impacto.
A maioria dos jornais, inclusive a Folha, publicou-a com todos os detalhes. Alguns poucos decidiram "limpar" da cena o pedaço de corpo para não chocar seus leitores. Era preferível que tivessem publicado outra foto das milhares que estavam disponíveis. Ao mexer na imagem sem informar seus leitores, esses jornais alteraram a realidade e cometeram uma fraude.
O questionamento do leitor, portanto, era pertinente. A desconfiança ameaça a credibilidade. E não importa se a foto fraudada é de um atentado internacional ou retrata um problema local. O dano é o mesmo.
Tratei de ouvir a editoria de Fotografia e recebi a seguinte explicação: "Para conseguir realizar a imagem do peixe dentro da água suja na represa, o repórter-fotográfico colocou sua câmera dentro de um aquário. A câmera, para não molhar, está dentro do recipiente, e o peixe, dentro da represa, ao contrário do que imaginou o leitor. O reflexo observado é do aquário onde está a câmera".
O leitor não se convenceu. E voltou a escrever: "Como explicar o reflexo do fotógrafo no aquário se ele estaria dentro da água, eu suponho? Tem mais, um aquário com tamanho suficiente para receber uma câmera é relativamente grande e tem uma base grande. Para colocar metade dele dentro da água, com a pressão da água de baixo para cima, haveria a necessidade da ajuda de pelo menos mais uma pessoa, e mesmo assim elas teriam dificuldade para manter o aquário estável. Meu objetivo não é polemizar, mas todas as pessoas para quem mostrei a foto, fiz minhas considerações e mostrei a resposta da Folha foram unânimes em afirmar que a foto parece montagem. E ainda acredito que quem está no aquário é o peixe".


No atentado de Madri, vários jornais alteraram a foto mais forte. Foi uma fraude
Pedi então ao repórter-fotográfico Lalo de Almeida um relato mais detalhado, para que eu pudesse me convencer e dar um retorno ao leitor.
Ele explicou que, diante de um assunto já muito explorado, pensou em algo diferente: uma foto que pudesse mostrar a poluição das águas de dentro da represa para fora. Teria, portanto, que mergulhar a máquina. Como o jornal não possui equipamentos apropriados para esse tipo de foto, decidiu improvisar. No caminho da represa, parou numa loja e comprou um aquário de 35 cm de comprimento, 20 cm de largura e 25 cm de altura. Tinha de ser uma peça com espaço suficiente para abrigar sua Canon EOS-1D com uma lente objetiva 14 mm.
Seu relato: "Na represa, existia um tronco velho que entrava cerca de 1,5 metro sobre a água. Caminhei pelo tronco carregando o aquário com o equipamento até chegar a uma profundidade de 30 cm. Posicionei a máquina no fundo do aquário aproximando a objetiva da parede de vidro, para tentar minimizar o reflexo. Segurei a máquina com as duas mãos e pressionei para baixo até o aquário afundar cerca de 12 centímetros. O mais importante era deixar a linha d'água exatamente na metade da objetiva. Com isso conseguiria captar o universo submarino (o peixe na água suja) e ter também uma referência externa (o pescador). Esse ângulo só daria certo com um objetiva grande-angular, como a que eu usava. Quando um dos pescadores conseguiu fisgar, passou com o peixe preso no anzol perto do aquário. Nesse momento, fiz a foto. Como a máquina estava dentro do aquário, as fotos foram feitas sem muita precisão. Além disso, o nível da água na parede do aquário variava bastante, pois eu tinha que pressionar a máquina para afundar o aquário enquanto batia as fotos. Foi essa variação do nível d'água que deixou algumas bolinhas na parede de vidro e que aparecem no lado esquerdo da foto".
Não se pode, portanto, falar em fraude. Diante dessas explicações mais detalhadas, Delvino Nunes se deu por satisfeito. E fez uma observação correta: "Ao reconhecer que utilizou um aquário, haveria a necessidade de compartilhar esta informação com o leitor, ao menos na legenda da foto".
Concordo. Quando o jornal usa recursos não convencionais para obter algum efeito fotográfico incomum, como foi o caso do peixe, deveria dividir a experiência com os seus leitores, céticos e curiosos.


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