São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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Episódio 1 - A ameaça no Planalto

RENATA LO PRETE

Esqueça a semifinal da Taça Libertadores e o novo episódio de "Guerra nas Estrelas". O confronto do momento se dá entre "desenvolvimentistas" e "monetaristas".
Ele não é novo, mas a atual temporada de hostilidades teve início na segunda-feira passada, com declarações de Luiz Carlos Mendonça de Barros em nome do primeiro grupo.
Nesse dia, vários jornais trouxeram entrevistas com o ex-ministro, recém-escolhido "porta-voz econômico" do PSDB.
À Folha, Mendonça de Barros previu que, "dentro de mais um, dois meses", o governo federal terá condições de "ser mais pró-ativo" no estímulo ao crescimento econômico.
Afirmou ainda que, já no ano passado, defendia a tese de que o país tem "de passar de uma macroeconomia da estabilidade para uma do desenvolvimento".
O atingido respondeu nas edições do dia seguinte. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, atacou o "debate desfocado" e, sem citar nomes, apontou "nostalgia dos anos 50" nas opiniões de Mendonça de Barros.
A partir daí, a semana abrigou um festival de estocadas envolvendo personagens do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Por que isso está acontecendo exatamente agora, quando o Planalto mal se desembaraçou de seu pior momento na CPI dos Bancos, é apenas uma das coisas que a imprensa ainda não conseguiu explicar direito.
"Desenvolvimentistas" x "monetaristas" (ou "neoliberais", como preferem alguns) é um embate de muitas sílabas e pouco esclarecimento.
O assunto parece feito sob medida para a Folha se exercitar na tarefa, descrita em seu projeto editorial, de tornar a informação "mais compreensível em seus nexos e articulações".
Até agora, porém, o jornal não chegou a tanto, como notou uma leitora que me escreveu na quarta-feira:
"Em vez de nos colocar como espectadores de uma luta da qual não participamos, a Folha deveria nos dar informações para elaborar nossa própria opinião a respeito do tema."
"Mas as reportagens são fracas. Repisam argumentos que todos já conhecemos contra ou a favor do desenvolvimento."
Ela também critica o jornal por "reforçar uma polarização", tratando do caso "como sinal externo de luta pelo poder no interior do governo".
Discordo do segundo ponto. A luta de que fala a leitora existe, não está sendo inventada pelo jornal. Na verdade, precisaria de mais explicação.
Boa parte das reportagens, e não apenas na Folha, ainda transmite a idéia de que Mendonça de Barros se porta como um garoto levado, como se ele pudesse dizer o que diz à revelia do presidente.
Quanto ao primeiro ponto, pouco há que acrescentar ao diagnóstico da leitora.
Na sexta-feira, por exemplo, a edição trazia três textos sobre a "guerra". Nenhum deles esclarecia o que representam, de fato, as partes em litígio.
Não me refiro às explicações congeladas vira-e-mexe inseridas no noticiário, do tipo "desenvolvimentistas são os que defendem a retomada do crescimento", e "monetaristas são os que priorizam a estabilidade econômica".
Essas, além de pobres para os iniciados, de nada adiantam para o leigo, que se pergunta como, afinal de contas, é possível ser contra o crescimento ou contra a estabilidade.
O que se espera são interpretações aprofundadas, que ofereçam ao leitor a oportunidade de entender o que está por trás dessa disputa e formar uma posição sobre o debate em torno do papel do Estado.
Se prevalecer a abordagem esquemática, o leitor vai achar que se trata apenas de uma versão menos interessante de Palmeiras x River Plate, ou do duelo entre Mestre Jedi e Darth Maul.
Primeiro, um elogio.
Ele vai para as histórias de desemprego que a Folha publicou no domingo passado, um painel que teve o mérito de dar nome e rosto a uma realidade que o governo e a imprensa costumam descrever apenas com números.
A pedido do jornal, 9 dos 50 mil candidatos que concorriam às 10 mil vagas da frente de trabalho aberta pela prefeitura paulistana escreveram cartas em que relatavam sua aflição.
Com segundo grau completo, disputavam a chance de varrer as ruas em troca de salário mínimo. Foram rejeitados. O recrutamento deu prioridade a pessoas menos escolarizadas.
Os nove escolheram os destinatários de suas cartas. Nelas, liam-se trechos como:
"O mais duro é não saber se vou poder continuar pagando a faculdade." (para o presidente da República)
"O que fiz me inscrevendo na frente de trabalho é vergonhoso? Ou vergonhoso é o desemprego que estamos vivendo?" (para Gugu Liberato)
"Eu não quero conversa. Eu só quero emprego." ("para ninguém")
Além dos depoimentos, a reportagem contava a história de Gilvan Andrade, 32, demitido há nove meses da fábrica de cortinas em que era ajudante-geral.
A Folha acompanhou Gilvan em sua caminhada diária de 15 quilômetros em busca de trabalho.
Para o IBGE, explicava o jornal, ele não é desempregado, porque recentemente fez "bico" lustrando peças de madeira (o instituto só inclui em seus cálculos pessoas que nada fizeram nos últimos sete dias).
O material de domingo valia pela força dos relatos e, como disse antes, pela abordagem diferenciada da questão do desemprego. Feito o elogio, vamos ao problema.
Dois dias depois, o jornal assumiu o tom de "porta da esperança" ao anunciar que, graças à sua reportagem, Gilvan contava agora com "duas opções de trabalho".
Fazia sentido registrar o desdobramento, mas, em primeiro lugar, é lícito perguntar: se duas possibilidades de emprego (uma concreta, outra vaga) foram transformadas na segunda notícia de maior destaque no caderno Dinheiro, o que será feito quando o ajudante-geral for de fato contratado?
Na noite de sexta-feira, a Redação me informou que ele começou a trabalhar.
Em segundo lugar, a sobriedade dos textos de domingo deu lugar, na terça-feira, a um engajamento festivo que fez a Folha se mostrar muito impressionada com o fato de um executivo ter doado uma cesta básica e um pacote de biscoitos à família de Gilvan.
Uma coisa é a disposição editorial de dar ao assunto um tratamento que vá além do duelo entre estatísticas obtidas por meio de diferentes metodologias.
Outra, muito diferente, é reduzir a questão do desemprego a um espetáculo de histórias tristes que, uma vez divulgadas pelo jornal, serão resolvidas por alguém disposto a "dar um pouco de si", como disse um dos entrevistados na terça-feira.
A Folha não pode enveredar pelo segundo caminho, sob pena de incorrer na mesma superficialidade dos programas de TV que o jornal gosta tanto de criticar.
Por que têm de ser tão ruins as entrevistas com atores que o jornal publica a propósito do lançamento de filmes?
Está certo que são eventos arranjados por estúdios e divulgadores com o único objetivo de promover essas produções.
Acertos prévios definem o que pode ou não ser abordado.
Nos diferentes jornais, as entrevistas são praticamente iguais.
Mesmo levando tudo isso em conta, há perguntas de doer.
Abaixo, dois exemplos colhidos na Ilustrada de sexta-feira.
Da Folha, para Keanu Reeves: "Em sua carreira, já houve algum momento em que você teve que se decidir entre uma escolha segura e uma escolha ousada?".
Da Folha, para Michelle Pfeiffer: "Como você concilia o papel de mãe, dona-de-casa e sua carreira de atriz?"


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