São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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OMBUDSMAN

Histórias da carochinha


RENATA LO PRETE
Abaixo , trechos de reportagens da Folha de quarta-feira sobre o programa de combate à violência anunciado na véspera pelo governo federal.
"Na prática, a medida (provisória que suspende o registro de armas até 31 de dezembro) inviabiliza a venda, já que elas só podem sair das lojas depois de registradas."
"Apesar de não serem obrigados a cumprir nenhum percentual, (para obter recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública) os governadores terão de provar com números que reduziram o índice de criminalidade e aumentaram o de apuração de crimes."
"Além de ser multada, a emissora (de TV) que descumprir a norma de classificação (de atrações por horários) poderá ser obrigada a exibir programas educativos, cuja realização seria financiada por um fundo formado pelas multas."
"Um dos maiores obstáculos ao anúncio do plano -a falta de dinheiro para bancar gastos extras de R$ 512,5 milhões neste ano- foi vencido porque a equipe econômica descobriu na última hora uma folga nas metas do ajuste fiscal negociado com o FMI."
A julgar por esses textos, o problema da violência parece de solução simples.
A confiança nos efeitos da medida provisória faz supor que bandidos compram armas em balcão de loja, e que portanto ficarão sem elas uma vez suspenso o registro.
Pela descrição do jornal, apenas governadores com lição de casa muito bem feita verão a cor do dinheiro do fundo.
No caso das multas, que ocuparam lugar de destaque na cobertura da Folha, deve-se imaginar que as emissoras vão adequar suas grades de programação aos desígnios do Ministério da Justiça.
Por fim, o dinheiro que supostamente não havia para combater a criminalidade apareceu como grata surpresa.
O leitor e o jornal sabem que as coisas não funcionam assim.
Que a medida provisória, louvável ou não, será incapaz de desarmar quem se pretende desarmar com ela.
Que os governadores se rebelaram antes mesmo do anúncio do plano, sepultando a idéia do cumprimento de metas percentuais como pré-requisito para receber ajuda. É improvável que aceitem a imposição mais modesta de demonstrar seu esforço "com números".
Que não há chance de um belo dia o telespectador encontrar um programa denominado educativo no lugar dos rapazes com pouca roupa da novela das 19h, cuja exibição havia sido recomendada pelo Ministério da Justiça para depois das 20h (para não falar no duvidoso impacto que tal providência teria sobre os índices de violência).
Quanto ao dinheiro, dificilmente saberemos se foi mesmo "descoberto na última hora" ou se isso é apenas o que diz o governo. Na dúvida, a prudência recomenda creditar a versão a seu autor, em vez de assumi-la como fato.
Se o jornal sabe de tudo isso, por que então noticia o plano como quem conta histórias da carochinha?
É curioso constatar o fenômeno na Folha, de longe o diário que menos se entusiasma com anúncios como o da semana passada. Há quem goste do jornal por causa disso. Há quem o deteste pelo mesmo motivo. Poucos discordam de que essa é uma de suas características.
Na própria quarta-feira, enquanto concorrentes festejavam os R$ 3 bilhões que, segundo o presidente, serão investidos em segurança pública até 2002, o título principal do caderno Cotidiano resumia as medidas dizendo que o "Plano de FHC refaz promessas eleitorais".
No dia seguinte, o jornal destacou que, com plano e tudo, o governo manteve bloqueada parte da verba prevista no Orçamento deste ano para o Fundo Penitenciário Nacional.
Mas, quando se desce da superfície dos títulos para o miolo dos textos, o relato costuma ser mais crédulo. A escolha das palavras trai o oficialismo das reportagens, fruto tanto da facilidade para incorporar o discurso do governo quanto da dificuldade para tratar dos assuntos de maneira um pouco mais aprofundada.
Nas páginas, o resultado é uma divisão estranha, em que a reflexão parece ser exclusividade dos textos opinativos. Nos demais, o jornal demonstra acreditar em tudo o que lhe contam.


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