São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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Um erro histórico


Privados de uma reportagem valiosa, os leitores foram prejudicados; que o erro da semana passada seja somente um tropeço, não uma tendência

O FURO jornalístico, a notícia exclusiva e de repercussão, é como golpe em uma luta, se dá e se leva. O esforço é para dar mais e levar menos.
Na quinta-feira, a Folha foi golpeada por uma revelação do jornal "O Globo", a troca de mensagens por computador entre ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão.
Pontualmente às 12h19 concluí a crítica sobre a edição (as críticas diárias do ombudsman podem ser lidas em www.folha.com.br/ombudsman). Segue abaixo, entre as "estrelas", o comentário "a quente", batizado como "O direito de saber".

 

Um profundo debate sobre direito à privacidade e direito público à informação se abre hoje [quinta-feira] com o furo do "Globo", sintetizado na manchete "Ministros do STF combinam e antecipam voto por e-mail".
Um repórter-fotográfico registrou a imagem da tela de computadores de ministros do Supremo na sessão que discutia a instauração de processo contra os 40 acusados pelo mensalão. O jornal publicou o que os juízes escreviam e liam: mensagens tratando da denúncia e outros temas.
Relembro: ontem [quarta] saiu na seção "Painel", da Folha, uma nota intitulada "Online". Dizia: "De tédio os membros do STF não morrerão durante as longas horas de sustentação oral dos advogados de defesa no julgamento do mensalão, que começa hoje. Segundo um conhecedor dos hábitos do tribunal, vários ministros vão passar o tempo navegando na internet".
No domingo, ao informar a tendência de voto em relação à denúncia contra o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, a Folha nomeou quatro a favor e quatro contra. Sobravam dois. O jornal escreveu: "A maior incerteza é em relação aos votos de Cármen Lúcia Rocha e Ricardo Lewandowski" -os personagens centrais da cobertura do "Globo".
Hoje, na reportagem "Governo espera justiça sem paixão, diz Dilma" (pág. A6), a Folha contou: "Ontem, no primeiro dia do julgamento, ministros usaram a internet para consultas e para trocar mensagens. Durante as principais falas do ministro Joaquim Barbosa, relator, e do procurador-geral, autor da denúncia, ao menos dois ministros navegavam pela rede e conversavam virtualmente pelo sistema do STF".
"Depois de ler o relatório, [...] Barbosa dedicou-se a ler e escrever no laptop. E, já na fase da apresentação dos advogados, o [...] procurador também usava seu computador".
Trecho da reportagem do "Globo" "Voto combinado na rede": "A conversa [entre os ministros Cármen Lúcia e Lewandowski], que durou duas horas e foi captada pelas lentes dos fotógrafos que acompanhavam o julgamento [...]".
As imagens que vi hoje foram feitas apenas por um fotógrafo, Roberto Stuckert Filho, do jornal carioca. O relato introduz a hipótese de que outras publicações tenham tido acesso às conversas on-line, mas não quiseram veiculá-las.
Para concluir as, como diriam em "juridiquês", preliminares, recordo que a primeira página e a pág. A4 da Folha de 27 de junho exibiram fotografias, feitas no Senado, de bilhete de Renan Calheiros para Arthur Virgílio. Aparentemente, sem autorização [...]. Aquela decisão editorial se assemelha à do "Globo" de estampar os "bilhetes eletrônicos" dos magistrados.
Primeiras impressões sobre o furo do dia: as fotografias foram feitas em prédio público, com acesso público e em sessão pública. Há interesse público em conhecer as inclinações da Suprema Corte no julgamento e bastidores de episódios não esclarecidos, como a aposentadoria do ministro Sepúlveda Pertence.
O repórter-fotográfico não interceptou ilegalmente correspondência eletrônica nem se beneficiou de interceptação ilícita de autoria alheia. Ele cobriu um evento público e flagrou o que era possível -no caso, as informações mais relevantes do dia, a respeito do voto de alguns ministros. Cumpriu seu legítimo dever jornalístico.
O furo impõe uma série de indagações: o STF deve se pronunciar conforme o sentimento da "comunidade" ou de acordo com a letra fria da lei?; a saída repentina de Pertence foi uma operação política do governo, em tentativa de influir no eventual processo do mensalão?; como ocorrem as discussões sobre votos antes dos julgamentos?; quais são os grupos em um tribunal aparentemente dividido?; qual a influência dos assessores no voto dos ministros?
Os leitores ganharão se a Folha for transparente, publicando na edição de amanhã [sexta] os fatos divulgados hoje pelo concorrente.
Caso o jornal tenha optado por não publicar informações em seu poder (o "Globo" fala em "fotógrafos"), penso que é seu dever noticiar a decisão e seus motivos.
 

A crítica diária suspeitava de algo que a edição de anteontem evidenciou: a Folha tinha, mas não veiculou, parte das informações do diário do Rio.
O trecho mais longo do diálogo entre Cármen Lúcia e Lewandowski, opinando sobre o mérito da acusação, saiu com mais frases na Folha.
E a foto da tela do computador da ministra que ilustrou a transcrição era datada de 22 de agosto, quarta-feira, creditada a Alan Marques, fotógrafo da Folha! Houve conversas, porém, que o jornal sugeriu não ter apurado. Atribuiu-as ao "Globo".
Ao imprimir a correspondência na sexta, a Folha demonstrou considerar legítimo o seu conhecimento público. Mas não explicitou que "guardara" o flagrante. Por que esperou um dia? Privados de uma reportagem valiosa, os leitores foram prejudicados.

Fala a Redação
Pedi a palavra da Redação. Resposta: "A Folha tinha algumas fotos registrando troca de e-mails entre os ministros do STF. Mas avaliou que as informações contidas nestas fotos não traziam material de interesse público relevante para justificar a quebra de sigilo de comunicação entre os dois magistrados".
Segue: "Já as telas de computador reproduzidas pelo "Globo" continham informações além das que a Folha dispunha, sobre disputa de interesses envolvendo a saída do ministro Pertence, seu substituto e o julgamento do mensalão. A troca de mensagens sugere interferências políticas que cabe investigar e que podem afetar o interesse público. Caso a Folha tivesse em mãos as mesmas informações, talvez a decisão do jornal fosse outra".
Discordo: antes, com informações de fontes não identificadas, o jornal gastou páginas e páginas especulando sobre os votos no Supremo; quando teve indicações da lavra de dois ministros, obtidas em local público, sem câmara oculta ou gravador disfarçado, desprezou-as.
O Judiciário é o Poder menos sujeito ao escrutínio dos cidadãos e do jornalismo. A Folha ostenta coragem na sua cobertura, como comprovam os notáveis trabalhos do repórter Frederico Vasconcelos. Na quinta, o jornal contradisse sua tradição de ousadia e recusa à acomodação.
Nas últimas três décadas, os acertos da Folha superaram por larga margem os enganos. Que o erro histórico da semana passada seja um tropeço, não uma tendência.


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Mário Magalhães é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2007. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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