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Tragédia, jornalismo e poder
Não foi o jornalismo que abusou ao relatar a condecoração da cúpula da Anac; foi o governo que zombou com sua insensibilidade sórdida
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A Folha considerou a novidade tão importante que a elegeu para a primeira página de
anteontem: "Última inspeção
do Airbus da TAM durou 15
minutos". A reportagem trouxe o testemunho do mecânico
que vistoriou o avião em Porto
Alegre antes da decolagem para São Paulo no dia 17. O jornal
reconheceu que o tempo despendido no exame da aeronave obedeceu aos padrões.
Optou pela exposição acentuada de informação sem relevância e não por um dos fatos
mais notáveis da véspera: o
chefe do Centro Nacional de
Investigação e Prevenção de
Acidentes contou que o órgão
prognosticara em dezembro
um desastre em Congonhas.
"Não conseguimos evitar
um acidente que previmos",
lamentou o brigadeiro Jorge
Kersul. Seu depoimento não
ganhou título na capa nem em
Cotidiano.
Identificar o que merece
destaque no noticiário é desafio permanente do jornalismo.
Mais ainda em uma tragédia
aeronáutica como a de 12 dias
atrás, a maior da história do
país, em que morreram duas
centenas de pessoas.
A seleção dos acontecimentos dignos de atenção não tem
sido a principal dificuldade da
Folha. Como em episódios semelhantes, a escassez de conhecimentos técnicos produz
erros que se amplificam em
virtude da ansiedade em esclarecer as causas do acidente antes que os dados permitam.
O jornal bancou, sem comprovação, que o Airbus-A320
acelerou no segundo terço da
pista principal de Congonhas.
Tratou como mecânicas possíveis falhas eletrônicas do
avião. Há outros exemplos.
Os tropeços sobre aeronáutica reeditam coberturas passadas, mas há diferença, a politização do infortúnio por governistas e oposicionistas.
Os primeiros rejeitam que a
pista sem ranhuras que escoam a água da chuva tenha
contribuído para o desastre.
Os segundos divergem. O aeroporto é administrado pela
Infraero, empresa pública.
Ao jornalismo cabe ser rigoroso na apuração dos fatos,
exercendo com vigor sua função de fiscalizar o poder -não
só o público, mas também o
privado, no caso a TAM.
A Folha colecionou momentos de leniência: divulgou
sem espírito crítico o pacote
da Agência Nacional de Aviação Civil para diminuir o tráfego em Congonhas; idem em
relação à viagem de oportunidade de deputados aos EUA,
onde estavam as caixas-pretas
do Airbus; e não publicou as
fotos de autoridades, inclusive
o presidente da República,
rindo e gargalhando sem pudor em cerimônia oito dias
após o acidente.
No sentido oposto, o jornal
errou em imprimir fotografia
de Denise Abreu fumando
charuto meses antes da tragédia. Deu a impressão de que a
diretora da Anac tripudiava da
dor alheia. O leitor não é obrigado a procurar as letras minúsculas que datam imagens.
Também pareceu imprópria
a reportagem da sexta "Vôos
de Lula são mais seguros do
que os comuns". Desconheço
país da dimensão do Brasil em
que o governante voe com menos ou igual segurança que os
passageiros regulares.
Gargalhadas sem pudor
No fundamental, no entanto, a Folha acertou. A politização se impôs com o sumiço de
Lula, mais preocupado em não
associar sua gestão à tragédia
e ao caos nos aeroportos do
que em confortar as famílias
das vítimas e prestar contas ao
país. Fosse nos EUA ou na Europa a demora de 72 horas para se manifestar, as críticas seriam mais ruidosas.
Quando o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia
e um auxiliar fizeram gestos
obscenos, eles haviam acabado de receber pelo "Jornal Nacional" a informação de que a
TAM admitia a inoperância de
um reverso (equipamento que
compõe o sistema de freios).
Defenderam sua atitude como reação à mídia que "culpava" a pista "federal" de Congonhas. Mas foi por um meio de comunicação que eles souberam da notícia do seu agrado.
Não foi o jornalismo que
abusou ao relatar a condecoração pela Aeronáutica do
presidente da Anac, Milton
Zuanazzi, três dias depois das
mortes. Foi o governo que
zombou com sua insensibilidade sórdida.
O governo assumiu sua
inépcia com a demissão do ministro Waldir Pires e a nomeação para a Defesa do presidenciável Nelson Jobim -mudança antecipada pela Folha.
Uma lição da crise: o jornalismo fraquejou ao não investigar com determinação as
companhias aéreas nos últimos dez meses, desde o desastre com o avião da Gol. Em vez
de investir na apuração sobre
atendimento aos usuários e a
manutenção de aeronaves,
preferiu-se alardear os lucros
fabulosos da TAM e da Gol.
Outra lição: em meio a interesses inconfessos, o interesse
público exige olhar atento e simultâneo para governo e concessionárias. A escandalosa
sujeição do Estado aos lobbies
das empresas foi decisiva para
a instauração do caos.
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