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Mauricio Antonio Ribeiro Lopes

TENDÊNCIAS/DEBATES

Ao próximo, o largo

O que sugerem os incomodados com os moradores de rua? Que mudemos os órgãos do governo para os Jardins? Depositar os pobres longe da vista da elite?

Caetano Veloso cantou que "a praça Castro Alves é do povo como o céu é do avião".

Castro Alves foi aluno da Faculdade de Direito no Largo de São Francisco, hoje parte da USP. Não chegou a ser doutor, contentou-se em ser poeta. Andava pelo mesmo largo que dois jovens doutores que, em artigo nesta Folha, mostraram querer de volta, como se fosse coisa deles, reclamando da presença de moradores de rua na área ("Os donos do largo de São Francisco", na última terça-feira, dia 26).

Castro Alves escreveu que "a lei sustenta o popular direito, nós sustentamos o direito em pé". O "nós", em Castro, não são as elites, mas o povo. O povo sustenta o direito em pé. O povo legitima o Estado e o exercício do poder.

Os que falam de albergue como solução para o povo em situação de rua mostram desconhecer de tudo um pouco e de um pouco tudo.

O albergue é a aniquilação da última reserva da personalidade, é o furto de seu único pé de meia sem par, é a proibição de entrar o totó, é a obrigatoriedade do banho, é um banho de regras para uma vida que se acostumou à liberdade total.

O que incomodou os jovens doutores que escreveram o artigo de terça-feira foi a ocupação do largo, digamos, "por essa gente diferente".

Eles se parecem com os moradores de Higienópolis que não queriam uma estação de metrô no seu bairro porque ela traria para próximo deles "essa gente diferenciada".

Se assemelham aos moradores de Pinheiros que não querem um albergue na sua rua, aos que se entusiasmam com soldados "dando porrada na nuca de malandros", de dependentes de crack, de moradores de rua e de miseráveis em geral.

O objetivo aqui não é desqualificar o orador, mas a grande pergunta que resta do artigo publicado em "Tendências/Debates" anteontem é esta: para quem é inaceitável a situação de rua? Para os incomodados com a própria miséria ou para os que são incomodados com a miséria alheia?

Tudo o que se viu no texto dos jovens doutores foi o incômodo causado pela miséria alheia.

O que propõem? Que a Secretaria de Segurança Pública mude de endereço e arraste consigo o Ministério Público e o Tribunal de Justiça para os Jardins ou o Itaim? (O Itaim Bibi, claro, embora exista outro na cidade que os jovens não devem conhecer nem por fotografia.)

Que a limpeza pública pare de lavar o local todas as manhãs e que à noite as instituições de caridade fiquem nas igrejas enquanto os novos próceres do desenvolvimento social fazem seu trabalho sujo?

Ou esperam simplesmente que o Leviatã arregace as suas mangas e deposite essas pessoas em qualquer lugar longe da vista da elite?

Somos os últimos a defender que nada deve ser feito. Mas, quando é imperioso que se faça alguma coisa, exatamente como no caso da cracolândia, não podemos nos contentar quando se faz qualquer coisa -e não devemos aceitar quando se faz a pior coisa.

Atentar contra a liberdade sem oferecer uma política pública que satisfaça realmente os anos de abandono social não é medida que se deva ousar pensar, ousar dizer e menos ainda ousar escrever.

Thomas Paine, que entendia muito mais de direitos humanos do que os jovens doutores e que transitou entre duas revoluções, disse que "a juventude é um defeito que o tempo corrige com rapidez". Os mais céticos comentam: nem sempre.

MAURICIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, 50, é promotor de Justiça para as áreas de habitação e urbanismo da cidade de São Paulo

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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