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Ruy Castro

Música para derreter

RIO DE JANEIRO - O sebo perto da praça João Mendes, em São Paulo, fazia jus ao nome. As estantes estavam organizadas por assunto, mas cada prateleira era uma barafunda de livros sem ordem, além dos espalhados pelo chão. Veja bem, não estou me queixando. Não sou daqueles que só entram em sebos assépticos, impecáveis, à prova de ácaros.

Ao contrário, gosto da bagunça. Nos sebos mais esculachados, a probabilidade de descobrir coisas interessantes é maior. Num deles, no Rio, encontrei uma obra completa de Edgar Allan Poe, em seis volumes, de 1884, rodada apenas 35 anos depois da morte de Poe. Em outro, os cinco romances de Charlie Chan, de Earl Derr Biggers, em edições lindas da Vecchi, dos anos 50 -cada exemplar, tanto do Poe quanto do Charlie Chan, a R$ 1, valor da época.

No sebo em que entrei outro dia, em São Paulo, o segundo andar era o dos discos. Gôndolas e gôndolas de LPs contendo o pior da música brasileira e internacional dos anos 80 -e quem os viveu sabe o quanto se precisou prensar de discos para acomodar esse pior. Mas chocantes mesmo eram as estantes, vergando ao peso de LPs sem capa, empilhados do chão ao teto -aos milhares, em blocos maciços, e impossíveis de ser consultados.

Ao sair, perguntei à menina no balcão qual era o destino daqueles discos. Sem tirar os olhos do tablet, respondeu: "Festas. O pessoal compra às centenas, para decorar as paredes, pendurar em árvores, calçar o piso. Ou cerâmica -você esquenta e eles viram cinzeiros, copos, vasos".

Aqueles discos continham música gravada, não importa qual. Para isso, um dia, jovens deram o melhor de si num estúdio, talvez aspirando à eternidade ou, pelo menos, a uma semana nas paradas. Mas nada disso aconteceu e, muitos anos depois, seus discos estavam ali, condenados a uma inesperada e inglória sobrevida.

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