São Paulo, Sábado, 01 de Janeiro de 2000


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2000

HAROLDO DE CAMPOS

os portais do terceiro milênio
(do vestíbulo
do)

rodam sobre seus rodízios de três zeros


acoplados em c a u d a de cometa
a um dois redondo
rodam os signos do zodíaco
atiçando a cósmica
esfagulhante
tocha augural

o princípio-esperança
pilastra esquerda do portal
e a moura-desespero
pilastra à direita
sustentam ambas
(discordante concórdia)
os portões que rangem
sobre os três
zeros esféricos
onde o sûnya o
vazio búdico
esbranca
como olho de águia
absorto em redondos
plenissóis:
o olho e o astro
se contrespelham

um dois brônzeo
dupla garra de gonzos
articula os portais
enquanto os rodízios cantam
a música plangente dos batentes
que se entreabrem
no engaste dobradiço
dos quícios bronzefúlgidos

o anjo-esperança
e a gárgula-desespero
se confrontam
no aprazado convergir do
calendário

ao longo do estepário
do futuro que se entre-
mostra vaziopleno de latentes
acasos
o anjo e a gárgula se defrontam

do mais fundo
dos séculos a voz do sábio melancólico
soa ainda
ressoa
ainda
como antes
no entrecéu do porvir
que sibila seu enigma:
a voz velha do sabedor-
-das-coisas repete
seu refrão que o trânsito
das centúrias só fez
confirmar como caixa-
-de ecos:

"e eu me voltei
eu / e vi /
toda a opressão //
que é feita / sob o
sol ///
e eis o choro dos oprimidos /
e não há para eles / conforto //
e da mão que os oprime /
força //
e não há para eles /
conforto"

o anjo-esperança recua
em sua armadura de diamante
a gárgula-desespero jubila
no seu gótico esqueleto de pedra

: "aquilo que já foi /
é aquilo que será //
e aquilo que será //
e aquilo que foi feito //
aquilo /
se fará ///
e não há nada de novo /
sob o sol" -
prossegue o-que-sabe
por entre as névoas
do nada

o arcanjo-esperança
tomado de sagrado
furor
flameja sua espada
multicentelhante
e rasga um claro
no ob-
nubilado
horizonte onde
se engendra o
f u t u r o

a gárgula guincha
no seu nicho de pedra -
na lâmina
coruscante do gládio lê-se
cravejado em estrelas :
"a esperança existe
por causa dos desesperados"


Notas do autor
1 - O "sábio melancólico" é o autor anônimo do "Eclesiastes" ("Qohélet", em hebraico). Cito um excerto de minha recriação do capítulo 4 desse "poema sapiencial" bíblico (cf. "Qohélet / O-Que-Sabe / Eclesiastes", Perspectiva, São Paulo, 1990).
2- Adaptei à conclusão de meu poema uma formulação extraída do ensaio de Walter Benjamin sobre "As Afinidades Eletivas", de Goethe, datado de 1925 (W.B., "Gesammelte Schriften, vol. 1, Suhrkamp, Frankfurt, 1974).

Haroldo de Campos, 70, é poeta, tradutor e ensaísta. Fundador do concretismo, é autor, entre outros, de "Crisantempo" (Perspectiva), "Finismundo -A Última Viagem" (Sette Letras) e "Pedra e Luz na Poesia de Dante" (Imago).




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