São Paulo, terça-feira, 01 de janeiro de 2002

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As paixões de Rembrandt

ARNALDO NISKIER

Pesquisar na Holanda, como tive o privilégio, é encontrar temas sem conta, para toda espécie de discussão. Escolhi este, para submeter ao crivo dos nossos leitores, como fiz no 2º Congresso dos Sefaradim, em São Paulo.
Apesar das perseguições da Inquisição, alguns judeus, principalmente os que se fixaram nos Países Baixos, tornaram-se abastados e adquiriram gosto pelas artes plásticas. Foram protetores de artistas, ao qual foram encomendadas muitas das obras que enriqueceram o seu catálogo. Na Holanda, considera-se o rabino Menasseh ben Israel, nascido em Portugal, como um dos maiores do seu tempo (século 17) e grande amigo do artista Rembrandt (1606-1669), de quem era vizinho.
Rembrandt, natural de Leiden, identificou-se com os nossos mitos, sem deixar de produzir também peças maravilhosas do Novo Testamento. Utilizando basicamente a água-forte, o pintor conseguiu produzir verdadeiras obras-primas. Assim surgiram admiráveis trabalhos sobre o céu incerto da Holanda, seus canais e costas ventiladas, seus velhos bosques de carvalho torcido e o mundo alegre dos seus pátios.
Rembrandt recebeu encomendas importantes, mas suas obras foram severamente criticadas; pintor requisitado pela burguesia e pela alta classe média, foi esquecido no fim da vida, morrendo quase abandonado. Na França e na Holanda, a profissão de pintor era exercida por membros dos setores baixos e médios da classe média. Rembrandt possuía origem humilde -era filho de moleiro e neto de padeiro-, e a grande moda de retratos fez com que ele recebesse diversas encomendas dos burgueses de Leiden e de Amsterdã.
O artista viveu na Holanda numa perfeita harmonia com a comunidade judaica. Pintou uma grande quantidade de quadros com essa motivação, dos 600 que constituíram a sua obra, dando ao mundo o testemunho artístico de um dos maiores gênios do país.
Fez cerca de cem auto-retratos, como os clássicos de 1629 e de 1658, este já com a fisionomia gorda e envelhecida, pois havia acabado de ir à bancarrota. Rembrandt tinha especial predileção por gente simples do povo e cenas do cotidiano, que ele retratava de forma dramática. Mas foi na interpretação da Bíblia que se sentiu a força do seu humanismo. Debruçou-se com carinho sobre as luzes do Velho Testamento.


Observando sua obra, alcançamos uma maior compreensão do que ele representou para a pintura universal


Trabalhou com a forte influência do seu mestre Pieter Lastman, depois que deixou a cidade natal de Leiden, mudando-se para a capital. A influência de Lastman, este possivelmente judeu, pôde ser registrada nas cores vívidas e nos gestos e expressão das suas figuras. O seu estilo promovia fortes contrastes entre luzes e sombras.
Mudou-se definitivamente para Amsterdã em 1632. Dois anos depois, casou-se com Saskia van Uylenburgh. De seus quatro filhos, só um (Titus) sobreviveu à infância. O casamento com a filha do burgomestre de Leeuwarden consolidou a posição material e social do artista, que atravessou uma fase de sucesso, entregando-se a uma vida faustosa e iniciando sua vasta coleção de arte.
De 1630 a 1640, Rembrandt recebeu grande número de encomendas, desenvolveu intensa atividade artística e aceitou muitos discípulos. Em 1638, o rei Carlos, da Inglaterra, adquiriu alguns de seus quadros. O atual Museu Rembrandt foi anteriormente uma luxuosa casa em St. Anthoniesbreestraat, comprada em 1639 pelo pintor, que a transformou em centro de reunião social e museu de objetos raros, móveis antigos, louças preciosas e jóias belíssimas, ali acolhendo vários alunos.
Apesar de ter sido importante colecionador de obras de arte, como comerciante não alcançou sucesso. Viveu os últimos anos de sua vida em dificuldade financeira, sobretudo porque jamais cedeu ao gosto popular, como queriam alguns de seus habituais compradores. Em 1642, Saskia morreu, alguns meses após o nascimento de Titus, iniciando o período de obscuridade de Rembrandt.
A conservação da casa adquirida em 1639 tornou-se extremamente dispendiosa. Suas últimas pinturas bíblicas não foram feitas para satisfação do público, mas por impulsos interiores. Em 1653, estava arruinado. Declarou falência em 1656. Perdeu a casa em 1657, pobre, e aos poucos foi sendo esquecido. Com a morte de seu filho Titus (1668), Rembrandt não conseguiu se recuperar do duro golpe. Um dos seus últimos quadros mostra o ambiente em que vivia: um quarto miserável e uma cadeira quebrada. Morreu um ano depois, no dia 4 de outubro de 1669. Seu nome está entre os maiores da pintura universal, ao lado de Michelângelo, Rafael, Rubens e Ticiano. Por meio do claro-escuro expressou o mundo dos sentimentos.
Considerado o pintor por essência da Bíblia e do Evangelho, deixou como obras-primas "Jacob Abençoando os Filhos de José", "Abrahão e Isaac", além de uma impressionante coleção de patriarcas, anjos e profetas que marcaram a sua homenagem ao Velho Testamento. Observando sua obra, é possível alcançar uma compreensão mais completa do que Rembrandt representou para a pintura universal, vivendo numa sociedade em que os judeus sefaradim eram figuras destacadas e, por isso mesmo, constituíram-se na inspiração dessa parte do trabalho do gênio.


Arnaldo Niskier, 66, membro da Academia Brasileira de Letras, é autor de "Shach: As Lições de um Sábio" (Edições Consultor). Foi secretário de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro.



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