São Paulo, quarta-feira, 01 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pacto e generalização da representação

LUIZ WERNECK VIANNA


Não é bom o ângulo de observação que apenas leve a reparar nessa esquerda os seus sinais típicos de identidade

Se, de fato, o nome do pau é pau e o da pedra é pedra, irrecusável que se vai começar este ano de 2003 sob o primeiro governo de esquerda da nossa história. Não há quem falte -todas as formações da esquerda se fazem nele representar, cada qual com a sua marca de origem e seus temas de preferência.
A questão dominante na agenda é desarmar eventuais objeções do cético mais curtido: a igualdade, bandeira canônica da esquerda desde sempre. E, por fim, golpe de misericórdia nos incréus, o partido hegemônico na coalizão governamental nasceu do sindicalismo operário e sua principal liderança, o atual presidente da República, é um ex-trabalhador metalúrgico. No entanto não é bom o ângulo de observação que apenas leve a reparar nessa esquerda os seus sinais típicos de identidade, porque, além disso, ela se define pelo caminho que adotou para a conquista do governo em uma competição eleitoral.
Não tanto por reconhecê-lo como alternativa legítima, velho ponto admitido desde fins do século 19 pelos autores clássicos e já trilhado com êxito, aqui mesmo na América Latina, no começo dos anos 1970, no Chile de Salvador Allende, mas sobretudo porque foi nele que a esquerda brasileira realizou um surpreendente e decidido movimento de conquista do centro político, apropriando-se de suas questões e da própria representação da tradição republicana -ao contrário, aliás, do que ocorreu naquela infeliz experiência, quando a esquerda, depois de ganhar o governo, derivou sem freios em favor de uma trajetória de revolução permanente.
Aí esteve e está a novidade, pois esse caminho se afastou da versão que interpretava os males do país pela ausência de uma ruptura em sua história, vista em chave negativa, resultado informe e injusto de um acúmulo de soluções desastradas, reclamando a intervenção heróica de um novo começo. A ida ao centro político, condição necessária para a vitória eleitoral, trouxe o momento da revisão, por parte da esquerda, em particular pela sua fração hegemônica petista, da obra de Vargas e de JK, as grandes referências que o sustentaram e o vinham animando desde 1930.
Assim, foram recuperados os temas do Estado como agência indutora do desenvolvimento econômico, da questão nacional e, ainda mais importante, da própria idéia de República, cuja noção de bem comum se viu desprestigiada por duas décadas de mobilizações em que a tônica no agir de cada ator social foi a de privilegiar o interesse próprio. Com essa recuperação, abandonou-se o sebastianismo de um recomeço redentor, o banzo pela falta de uma ruptura que nunca vinha e, na prática, firmou-se a sentença de absolvição da nossa história, pois não podia ser desastrosa a que, sem abandonar as suas grandes linhas de continuidade, admitia a conclusão do processo de transição à democracia com a transferência do governo para as mãos das forças empenhadas no sentido da mudança social.
A partir daí abriu-se um olhar reparador sobre nosso passado, inclusive como um rico inventário de experiências a ser retomado, como no caso do pacto social, cuja institucionalização no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, sob o governo Lula, é herdeira direta das estratégias de intervenção do Estado no domínio econômico dos tempos de Vargas e de JK. Com esse conselho, redime-se a tradição brasileira de valorização da representação funcional, caso conspícuo da Fiesp, dos sindicatos de base e de suas organizações de cúpula, que nos vem dos anos 30 e que, desde então, tem sido legitimada pelos nossos textos constitucionais, inclusive pela Carta de 1988, embora tenha sido objeto nos últimos anos de pesada crítica, denunciada -não apenas pelos que brandiam o argumento neoliberal- como cenário propício a um particularismo corporativista.
A representação funcional, assim, volta a encontrar espaço no âmbito do Executivo, ressalvada a diferença crucial quanto a momentos anteriores de que suas instituições, agora, estão livres de qualquer tutela e atuam em um contexto de plenas liberdades públicas e civis, circunstância que ainda mais a favorece no exercício de suas novas atividades no âmbito do Judiciário, como no controle da constitucionalidade das leis e nas ações civis públicas.
Nessa direção, uma das possíveis repercussões institucionais do pacto social está em ampliar os mecanismos de representação, podendo consistir em uma barragem efetiva às eventuais tentações de uma administração de estilo decisionista que leve em conta apenas a vontade e o cálculo procedido pelo Executivo. No caso de um governo de esquerda, o sucesso do modelo está intimamente associado a que não se penalizem os interesses e os direitos dos setores organizados das classes subalternas, sob o falso pretexto de que eles se constituam em obstáculos à retomada do crescimento econômico e/ou signifiquem privilégios quando confrontados com os da massa da população, como insistem alguns corifeus de um neoliberalismo encapuzado que ainda vaga, infiltrado por aí.
De uma perspectiva ainda mais geral, bem pode ser que o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social se constitua no lugar em que a democracia política e a democracia social comecem a superar a gritante distância que as separa. Nesse conselho, as forças da produção e as do associativismo da sociedade civil podem ter a oportunidade de encontrar soluções minimamente consensuais sobre um programa de retomada do crescimento econômico e de políticas sociais de caráter incorporador, a serem encaminhadas ao poder político e, no que couber, ao Legislativo.
Com esse percurso, alarga-se a representação, instituindo-se o social como dimensão orientada a dar vida e substância às instituições da democracia política; fórmula esperançosa, embora de difícil execução, com que se pode iniciar mais um capítulo na história do país, uma vez que, depois de sua absolvição nesta última competição eleitoral, ela pode recomeçar.


Luiz Werneck Vianna, 64, é professor pesquisador do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).


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