São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Diretas-Já, 20 anos

MÁRCIO THOMAZ BASTOS


A campanha pelas Diretas-Já foi o movimento mais importante da cidadania na história recente


Há 20 anos , a cidadania brasileira dava início a uma mobilização que marcou para sempre a nossa história. As lembranças que tenho do período são maravilhosas. No início, houve a adesão de algumas dezenas de milhares. Em pouco mais de quatro meses, entre janeiro e abril de 1984, éramos milhões. Uma luta que uniu os corações e mentes da nossa ainda frágil e recém-nascida democracia brasileira. Uma luta pelo fim da ditadura e pelas eleições diretas para presidente da República. A proposta de emenda constitucional, a querida "Emenda das Diretas", de autoria do então deputado Dante de Oliveira, foi vergonhosamente rejeitada pelo Congresso em abril daquele mesmo ano. Mas a vitória veio depois.
Lembro-me que o primeiro comício do PT de mobilização em torno da luta pelas Diretas-Já foi no Pacaembu, em novembro de 1983. Na época, eu era presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo. Logo depois daquele comício, que reuniu algo em torno de 30 mil pessoas, o então governador Franco Montoro, à época o mais importante líder político do PMDB, chamou-me ao Palácio dos Bandeirantes para uma reunião. Foi em dezembro daquele ano. Fernando Henrique Cardoso, então presidente do PMDB de São Paulo, José Gregori e muitos outros líderes políticos estavam presentes.
Nascia ali, naquela sala, a idéia de fazer o primeiro grande comício pelas diretas. E um calendário de mobilização, abraçado pelos principais partidos da resistência democrática, que criariam o Comitê Suprapartidário Pró-Diretas, para que a briga em torno da eleição presidencial pelo voto direto ganhasse as ruas.
Caberia a mim falar em nome da sociedade civil no primeiro comício, marcado para acontecer no centro de São Paulo. Um desafio e tanto. Até aquela época, a OAB nunca havia se pronunciado publicamente em atos político-partidários ou mesmo, naquele caso, em atos suprapartidários. A tradição nos mantivera até aquele momento como um organismo que só se abria para opinar em instâncias próprias.
Naquele grandioso e memorável dia 25 de janeiro, almocei com o jornalista Tarso de Castro, editor do Pasquim, ali pelo centro da cidade. De lá, fomos para o comício. Lembro-me que chegamos com dificuldade ao palanque. Quem animava o comício eram o locutor Osmar Santos e Fernando Henrique Cardoso. Os grandes líderes políticos do país também estavam lá. O hoje presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o deputado Ulysses Guimarães, os governadores Tancredo Neves, Leonel Brizola e Franco Montoro, entre outras figuras da nossa história de luta.
A enorme massa popular ganhava contornos mágicos aos nossos olhos. Estimou-se em 300 mil as pessoas presentes ao comício da Sé. Há quem diga que o número estava superestimado. Bobagem. Como disse Montoro durante seu discurso: "Aqui estão 130 milhões de brasileiros". Ulysses chegou a anunciar que "a bastilha do Colégio Eleitoral" havia caído naquele dia em São Paulo. A luta era pelo fim do artigo 74 da Constituição, que colocava na mão do Colégio Eleitoral a escolha do presidente.
Ao final daquela festa, que seguiu radiante mesmo com chuva, a massa ainda dançava, cantava e expressava a vontade nacional. Na multidão, bandeiras dos partidos de esquerda ainda na clandestinidade, como o PCB e o PC do B, misturavam-se com a bandeira nacional. Saímos embevecidos dali. Junto com Fernando Henrique e Gregori, deixei o comício, e seguimos, juntos, ao meu antigo escritório, perto da Sé, para assistir ao noticiário da televisão. A campanha pelas Diretas-Já ganharia pouco destaque no noticiário televisivo naquela noite. Mas o movimento embalou. Eu mesmo fui a Florianópolis, Campo Grande e a outros comícios. Para honra dos advogados, a coordenação dos trabalhos do Comitê Suprapartidário foi atribuída ao presidente da OAB nacional, Mário Sérgio Duarte Garcia. Enquanto a campanha se fortalecia, o regime militar, esclerosado, agonizava.
O Brasil se deu conta disso no megacomício do Anhangabaú, em 15 de abril, quando 1 milhão de pessoas tomaram as ruas. No Palácio do Planalto, o chefe do Gabinete Militar do presidente Figueiredo, Rubem Ludwig, declarava que o movimento buscava a desordem e a baderna. "A baderna está no Colégio Eleitoral", discursou Lula, diante da multidão. "A República está aqui", emendou Ulysses Guimarães diante de milhares de pessoas. Na Candelária, no Rio de Janeiro, o jurista Sobral Pinto, um dos mais lendários advogados do Brasil, foi ovacionado pela multidão ao recitar o texto constitucional: "Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido".
O país estava vivendo e respirando ansiosamente os novos ventos da democracia. A campanha pelas Diretas-Já, vista da perspectiva histórica de quem assistiu depois à luta pelo impeachment de um presidente, foi o movimento mais importante da cidadania que houve na história recente da nossa República. Quando, em 25 de abril de 1984, o Congresso sepultou a emenda das diretas, perdeu o bonde da história. O país teve que esperar por mais nove meses para sepultar o regime e conquistar a democracia.


Márcio Thomaz Bastos, 68, advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), é o ministro da Justiça. Foi presidente da OAB nacional (87-89) e da OAB-SP (83-85).


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