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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os atentados ocorridos no Rio são um sinal de abalo no crime organizado?
SIM
Uma ação irracional
MICHEL MISSE
O varejo do tráfico no Rio está em
dificuldades há algum tempo, mas
isso não significa nem que os traficantes
estejam encurralados pela polícia nem
que sua expansão terminou.
É uma conjuntura adversa ao mercado ilícito das drogas que, a meu ver, explica em parte a rebelião de segunda-feira passada. Como entender que, às
vésperas do Carnaval, quando a demanda por drogas aumenta, os donos de bocas decidam assustar a cidade e, por
conseguinte, afastar muitos consumidores dos morros? O tráfico é um negócio e, como qualquer negócio, não pode
afugentar seus fregueses. Além disso,
era evidente que uma rebelião como
aquela iria levar a polícia a ocupar morros, a reforçar a vigilância nas ruas próximas às bocas, além de iniciar uma nova rodada de apreensões de celulares e
outros aparelhos dentro das penitenciárias -medidas que afetam o movimento nas áreas do tráfico varejista.
O principal ponto do comércio varejista no Rio, a Rocinha, pode ver desabar as previsões de um faturamento de
cerca de US$ 5 milhões durante o Carnaval, caso ocorram sucessivas incursões policiais às suas bocas com seus
inevitáveis tiroteios, que afastam uma
parte importante da freguesia da zona
sul. Por que, então, a rebelião, a baderna
que assustou o Rio desde a segunda?
Quase todos os principais donos de
bocas estão presos ou morreram. É
grande também o número de gerentes
presos ou mortos nos últimos anos. Isso, no entanto, não fez com que a atração exercida pelo tráfico junto a muitos
jovens e crianças das comunidades pobres do Rio diminuísse ou entrasse em
colapso. Há filas de meninos querendo
entrar para o tráfico, mas o movimento
não é mais capaz de atender a todos os
pedidos. A mão-de-obra está mais jovem, há cada vez mais crianças trabalhando nas bocas. Apesar disso, houve
uma relativa queda nos negócios nos últimos anos, resultante de vários fatores.
Desde o assassinato de Tim Lopes, o
movimento caiu numa posição defensiva, sob forte pressão da mídia. A situação dos donos presos piorou com as reiteradas revistas nas celas.
Todos os meios empregados na baderna são conhecidos há muito tempo:
ônibus são incendiados há décadas. Saques a supermercados e ordens para o
comércio fechar também ocorrem há
muitos anos. O que houve de novo?
No "ensaio" de setembro do ano passado e na rebelião de agora, essas ações
foram articuladas num mesmo dia e foi
distribuído um "manifesto". O panfleto
ameaça e exige o fechamento de todo o
comércio utilizando-se da mesma linguagem "política" de algumas lideranças da época em que surgiu a Falange
Vermelha. Tenta-se hoje, nas penitenciárias, rearticular o grau de organização que o Comando Vermelho teria
possuído em seu início e que se perdeu a
partir de meados dos anos 80. Mas isso
não é fácil, em virtude da desconfiança
recíproca entre os donos de boca, que
não abrem mão do pleno poder sobre
suas áreas. Concordam, no entanto, em
articular algumas ações conjuntas, como essas que ocorreram em setembro e
agora em fevereiro. Querem mostrar
força e desmoralizar a polícia.
A hipótese de que estariam "testando"
o novo governo é insustentável por razões óbvias. Eles dizem, no tal manifesto, que fazem isso porque são tratados
"ilegalmente" e chegam a denunciar a
Vara de Execuções Penais. Como eles
têm centenas de advogados, fica difícil
entender que suas denúncias não pudessem ser encaminhadas de outro modo que não através de uma rebelião extrapenitenciária. Nesse sentido, o manifesto aproxima a rebelião de segunda
das sucessivas rebeliões penitenciárias
que ocorrem no país, com a diferença
de que se deu no aberto espaço urbano,
e não no restrito espaço dos presídios.
Do que eles reclamam? Se deixarmos
de lado o arrazoado supostamente político do manifesto, restam denúncias
contra arbitrariedades policiais em comunidades pobres e ilegalismos do judiciário na fase processual e na execução penal. A rebelião seria, então, para
chamar a atenção para esses problemas,
um ato de vingança desesperada. Em
qualquer caso, uma ação inútil.
Não vejo nenhuma racionalidade na
ação desfechada na segunda-feira no
Rio de Janeiro pelo "coletivo" do CV.
Tudo isso parece indicar, se considerada a conjuntura adversa dos últimos
meses (inclusive com a desarticulação
do PCC, com quem o CV pretendia renovar suas forças perdidas), que essa rebelião foi uma ação irracional, como se
o tráfico estivesse acuado pelo Estado.
Como sabemos que não é esse o caso, só
posso sugerir que se debite a rebelião à
conjuntura adversa que os donos presos
do CV atravessam.
Michel Misse, doutor em sociologia, é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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