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São Paulo, sábado, 01 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os atentados ocorridos no Rio são um sinal de abalo no crime organizado?

SIM

Uma ação irracional

MICHEL MISSE

O varejo do tráfico no Rio está em dificuldades há algum tempo, mas isso não significa nem que os traficantes estejam encurralados pela polícia nem que sua expansão terminou.
É uma conjuntura adversa ao mercado ilícito das drogas que, a meu ver, explica em parte a rebelião de segunda-feira passada. Como entender que, às vésperas do Carnaval, quando a demanda por drogas aumenta, os donos de bocas decidam assustar a cidade e, por conseguinte, afastar muitos consumidores dos morros? O tráfico é um negócio e, como qualquer negócio, não pode afugentar seus fregueses. Além disso, era evidente que uma rebelião como aquela iria levar a polícia a ocupar morros, a reforçar a vigilância nas ruas próximas às bocas, além de iniciar uma nova rodada de apreensões de celulares e outros aparelhos dentro das penitenciárias -medidas que afetam o movimento nas áreas do tráfico varejista.
O principal ponto do comércio varejista no Rio, a Rocinha, pode ver desabar as previsões de um faturamento de cerca de US$ 5 milhões durante o Carnaval, caso ocorram sucessivas incursões policiais às suas bocas com seus inevitáveis tiroteios, que afastam uma parte importante da freguesia da zona sul. Por que, então, a rebelião, a baderna que assustou o Rio desde a segunda?
Quase todos os principais donos de bocas estão presos ou morreram. É grande também o número de gerentes presos ou mortos nos últimos anos. Isso, no entanto, não fez com que a atração exercida pelo tráfico junto a muitos jovens e crianças das comunidades pobres do Rio diminuísse ou entrasse em colapso. Há filas de meninos querendo entrar para o tráfico, mas o movimento não é mais capaz de atender a todos os pedidos. A mão-de-obra está mais jovem, há cada vez mais crianças trabalhando nas bocas. Apesar disso, houve uma relativa queda nos negócios nos últimos anos, resultante de vários fatores.
Desde o assassinato de Tim Lopes, o movimento caiu numa posição defensiva, sob forte pressão da mídia. A situação dos donos presos piorou com as reiteradas revistas nas celas.
Todos os meios empregados na baderna são conhecidos há muito tempo: ônibus são incendiados há décadas. Saques a supermercados e ordens para o comércio fechar também ocorrem há muitos anos. O que houve de novo?
No "ensaio" de setembro do ano passado e na rebelião de agora, essas ações foram articuladas num mesmo dia e foi distribuído um "manifesto". O panfleto ameaça e exige o fechamento de todo o comércio utilizando-se da mesma linguagem "política" de algumas lideranças da época em que surgiu a Falange Vermelha. Tenta-se hoje, nas penitenciárias, rearticular o grau de organização que o Comando Vermelho teria possuído em seu início e que se perdeu a partir de meados dos anos 80. Mas isso não é fácil, em virtude da desconfiança recíproca entre os donos de boca, que não abrem mão do pleno poder sobre suas áreas. Concordam, no entanto, em articular algumas ações conjuntas, como essas que ocorreram em setembro e agora em fevereiro. Querem mostrar força e desmoralizar a polícia.
A hipótese de que estariam "testando" o novo governo é insustentável por razões óbvias. Eles dizem, no tal manifesto, que fazem isso porque são tratados "ilegalmente" e chegam a denunciar a Vara de Execuções Penais. Como eles têm centenas de advogados, fica difícil entender que suas denúncias não pudessem ser encaminhadas de outro modo que não através de uma rebelião extrapenitenciária. Nesse sentido, o manifesto aproxima a rebelião de segunda das sucessivas rebeliões penitenciárias que ocorrem no país, com a diferença de que se deu no aberto espaço urbano, e não no restrito espaço dos presídios.
Do que eles reclamam? Se deixarmos de lado o arrazoado supostamente político do manifesto, restam denúncias contra arbitrariedades policiais em comunidades pobres e ilegalismos do judiciário na fase processual e na execução penal. A rebelião seria, então, para chamar a atenção para esses problemas, um ato de vingança desesperada. Em qualquer caso, uma ação inútil.
Não vejo nenhuma racionalidade na ação desfechada na segunda-feira no Rio de Janeiro pelo "coletivo" do CV.
Tudo isso parece indicar, se considerada a conjuntura adversa dos últimos meses (inclusive com a desarticulação do PCC, com quem o CV pretendia renovar suas forças perdidas), que essa rebelião foi uma ação irracional, como se o tráfico estivesse acuado pelo Estado. Como sabemos que não é esse o caso, só posso sugerir que se debite a rebelião à conjuntura adversa que os donos presos do CV atravessam.


Michel Misse, doutor em sociologia, é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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