São Paulo, terça-feira, 01 de maio de 2007

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Bento 16 ou Sísifo revisitado

MATEUS SOARES DE AZEVEDO


A igreja viu diminuir sua influência real. As divisões internas aumentaram. Em contraste, o cristianismo oriental não vive crise


NOSSA ÉPOCA ainda é dominada pelos espectros de Darwin, Marx, Freud, Jung e Teilhard de Chardin. Alguns deles, ou todos, podem ser considerados superados.
Mas o fato é que sua influência, percebida ou não, deixou marcas profundas em nosso modo de pensar e agir. Os "ismos" que forjaram continuam sendo as peças básicas de nossa "religião" secular. Esta também tem seus defensores "fundamentalistas", que praticam uma "intolerância religiosa" que nada fica a dever aos piores exemplos do passado.
Pouquíssimas pessoas e instituições não foram afetadas por tais idéias. Em razão de sua influência no mundo ocidental, vale a pena avaliar como afetaram a Igreja Católica.
Elas o fizeram especialmente mediante a revolução que foi o Concílio Vaticano 2º (1962-65). O arquiteto do concílio foi o jesuíta Teilhard de Chardin. Com seu evolucionismo panteísta com verniz cristão, ele dizia que Cristo representou um grande "salto evolutivo" e que Deus também está sujeito à "evolução". Se Lutero foi um cristão que deixou a igreja, Teilhard foi um pagão que permaneceu nela, diz um comentário espirituoso.
A natureza dessa revolução pode ser apreciada pelos ditos e escritos dos papas do período, de João 23 a Bento 16. Neles, percebe-se um programa radical e sem precedentes. Apesar disso, não suscitou grandes indagações por parte de um público que permanece relativamente passivo.
Seja como for, a influência de Teilhard continua. Na sua primeira homilia de Páscoa, em abril de 2006, Bento 16 declarou: "A ressurreição de Cristo é algo diferente: se tomarmos emprestada a linguagem da teoria da evolução, trata-se da maior das mutações, o salto mais crucial rumo a uma dimensão totalmente nova".
O espírito da fala é completamente teilhardiano. Nisso Bento 16 não está só. Os papas do "aggiornamento" compartilham a mesma admiração.
Não obstante, há uma diferença. Bento 16 representa um novo modelo. João 23 (1958-63) foi o pioneiro das mudanças; Paulo 6º (1963-78) foi o ousado "revolucionário" que levou as transformações adiante e fechou o ciclo. Encerrou o concílio com "chave de ouro", em 7/12/1965: "A descoberta das necessidades humanas absorveu toda a atenção do concílio. Vós, humanistas do nosso tempo, dai ao concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso novo humanismo: também nós -e nós mais do que ninguém!- temos o culto do homem!".
João Paulo 1º, o "papa sorriso" do marketing conciliar, governou por só 33 dias, mas legou ao sucessor um nome que já é todo um programa. João vem do "precursor", e Paulo, do "finalizador". Mas João Paulo 2º (1978-2005) foi além. Foi o responsável pela manutenção das transformações. Assim, teve um papel comparável ao de Napoleão após a Revolução Francesa, impedindo a implosão do "aggiornamento" e a volta do "Ancien Régime". João Paulo 2º foi o papa da imagem, dos eventos externos, das viagens.
Mas não teve êxito em deter a queda no número de fiéis, o fechamento de escolas e seminários, a baixa freqüência aos sacramentos, as defecções do sacerdócio, a secularização. A igreja viu diminuir drasticamente sua influência real. Além disso, as divisões internas aumentaram. Em contraste, o cristianismo oriental não vive crise.
Comparado com seus antecessores imediatos, Bento 16 inaugura um novo conceito e fase. A simples escolha do nome já diz muito. Ele não será nem um João Paulo 3º nem um Paulo ou um João a mais. Tampouco um Pio, cujo nome indicaria repúdio ao modernismo, definido por Pio 10º (1903-14) como a "síntese de todas as heresias". Seus modelos são o fundador da ordem beneditina, contemplativo cuja divisa é "ora et labora".
E Bento 15 (1914-22), papa conciliador. Assim, pode-se especular que Bento 16 almeje conciliar passado e presente, tradição e revolução. Suas ações apontam na direção da correção dos "excessos". Ao mesmo tempo, busca um acordo entre contrários, de onde uma certa ambigüidade.
No "Washington Times" (30/9/03) informou ser um teólogo radical durante o concílio, mas agora é visto como conservador. Sua Santidade disse que, como o mundo tendeu para a esquerda, mesmo um progressista de suas convicções parece conservador.
Em "La Croix" (28/12/01) esclareceu ser um representante da nova igreja que não crê em "retorno à tradição".
O cerne da questão é que enfrenta os efeitos perversos longínquos da revolução que ajudou a fomentar no passado. Quer limitar ou abolir as conseqüências destrutivas. Mas se limita aos efeitos. Visa os "excessos", não a raiz do que ele mesmo denominou "autodemolição" da igreja. Sua agenda aponta para uma intrincada "concertação". Conseguirá ser bem-sucedido nessa tarefa de Hércules?
Ou se engajará em obra de Sísifo?

MATEUS SOARES DE AZEVEDO , jornalista e historiador das religiões, é autor, entre outras obras, de "A Inteligência da Fé - Cristianismo, Islã e Judaísmo".

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