São Paulo, sexta-feira, 01 de junho de 2007

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JOSÉ SARNEY

RCTV e a democracia

HÁ MAIS DE 20 anos, em pleno regime autoritário, escrevi, nesta mesma coluna, um texto sobre democracia, sustentando que o substantivo democracia quando é adjetivado começa a decompor-se. Naquele tempo, existiam as democracias populares e a liberal. A social-democracia estava em moda, como bola do meio, mas Bobbio escreveu que nunca conseguiu saber o que era. Octavio Frias, atento aos colunistas, tempos sem internet, passou-me um telegrama apoiando.
Agora surge uma democracia bolivariana, e volto à minha velha tese de que quando essas coisas começam a surgir é porque a democracia vai mal. No seu estilo bem inglês, Churchill a explicou dizendo que era "o regime no qual, se às cinco horas da manhã a campainha de sua casa toca, você tem a certeza de que é o leiteiro". Dentro dessa quase parábola, o que pensava é que a democracia tem como essência a liberdade sem medo. Sem polícia política, sem o arbítrio, sem ninguém sentir-se obrigado à pior das censuras, que é a auto-censura.
Nessa linha, Roosevelt incluiu, entre as liberdades, a "liberdade de não ter medo" ("freedom from fear").
Partido único, ausência de controvérsia, Parlamento unânime, Justiça acuada e doméstica não combinam com democracia.
O fechamento na Venezuela da RCTV, a maior emissora de televisão do país, em homenagem à deusa Adrastéia, a deusa da vingança, é inconcebível. A democracia não é uma palavra, é um estado de espírito, consciência de que se pode não estar certo, tem de aceitar o diálogo, a controvérsia, formar maiorias pelo voto livre e leis por parlamentos livres, eleitos pelo povo, protegidos pela força do Direito abrigado na Constituição. Mas não instituições simplesmente formais, numa democracia virtual. Quando não existe o "espírito democrático", desaparece a liberdade de não ter medo. A imprensa -a mídia- na Venezuela é hoje, com razão, amedrontada.
Devemos recordar que a liberdade de imprensa nasceu na concepção de Jefferson de que, se o Parlamento tinha a proteção da inviolabilidade de palavra e voto, o povo devia ter a liberdade de opinião, de questionar o próprio governo, através de uma imprensa livre. Hoje, essa liberdade é representada pelo conjunto da mídia.
Nosso protesto contra a tentação totalitária, da qual atos como este constituem uma visão de começo.
A cláusula democrática que Alfonsín e eu colocamos como base da integração sul-americana é pétrea. Fora dela não há salvação.


jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY
escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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