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JOSÉ SARNEY
RCTV e a democracia
HÁ MAIS DE 20 anos, em pleno regime autoritário, escrevi, nesta mesma coluna,
um texto sobre democracia, sustentando que o substantivo democracia quando é adjetivado começa
a decompor-se. Naquele tempo,
existiam as democracias populares
e a liberal. A social-democracia estava em moda, como bola do meio,
mas Bobbio escreveu que nunca
conseguiu saber o que era. Octavio
Frias, atento aos colunistas, tempos sem internet, passou-me um
telegrama apoiando.
Agora surge uma democracia bolivariana, e volto à minha velha tese
de que quando essas coisas começam a surgir é porque a democracia
vai mal. No seu estilo bem inglês,
Churchill a explicou dizendo que
era "o regime no qual, se às cinco
horas da manhã a campainha de
sua casa toca, você tem a certeza de
que é o leiteiro". Dentro dessa quase parábola, o que pensava é que a
democracia tem como essência a liberdade sem medo. Sem polícia
política, sem o arbítrio, sem ninguém sentir-se obrigado à pior das
censuras, que é a auto-censura.
Nessa linha, Roosevelt incluiu, entre as liberdades, a "liberdade de
não ter medo" ("freedom from
fear").
Partido único, ausência de controvérsia, Parlamento unânime,
Justiça acuada e doméstica não
combinam com democracia.
O fechamento na Venezuela da
RCTV, a maior emissora de televisão do país, em homenagem à deusa Adrastéia, a deusa da vingança, é
inconcebível. A democracia não é
uma palavra, é um estado de espírito, consciência de que se pode não
estar certo, tem de aceitar o diálogo, a controvérsia, formar maiorias
pelo voto livre e leis por parlamentos livres, eleitos pelo povo, protegidos pela força do Direito abrigado na Constituição. Mas não instituições simplesmente formais, numa democracia virtual. Quando
não existe o "espírito democrático", desaparece a liberdade de não
ter medo. A imprensa -a mídia-
na Venezuela é hoje, com razão,
amedrontada.
Devemos recordar que a liberdade de imprensa nasceu na concepção de Jefferson de que, se o Parlamento tinha a proteção da inviolabilidade de palavra e voto, o povo
devia ter a liberdade de opinião, de
questionar o próprio governo, através de uma imprensa livre. Hoje,
essa liberdade é representada pelo
conjunto da mídia.
Nosso protesto contra a tentação
totalitária, da qual atos como este
constituem uma visão de começo.
A cláusula democrática que Alfonsín e eu colocamos como base da
integração sul-americana é pétrea.
Fora dela não há salvação.
jose-sarney@uol.com.br
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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