São Paulo, terça-feira, 01 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A democracia social e o império da lei


Precisamos de ordem e de progresso, valores que os primeiros republicanos viram como síntese para a consolidação do Brasil


MICHEL TEMER

A Folha publicou, dia 16 de julho, uma pesquisa reveladora de que mais de 50% dos brasileiros não aplaudem a democracia. É até assustador o número de pessoas que aprovariam um sistema autoritário. Vi, lamentavelmente, confirmar o que venho dizendo já há algum tempo: o Brasil vive fluxos de democracia e refluxos de autoritarismo. É o que evidencia a nossa trajetória constitucional. Após 20 anos, 30 anos de um sistema aberto, participativo, segue-se um período de sistema fechado, ditatorial. Tem sido assim desde a Primeira República. Montou-se um sistema aberto (para a época), até 1930, quando começaram a soprar os ventos do autoritarismo, que se consolidariam em 1937, perdurando até 1945; vivenciamos a democracia de 1946 a 1964, seguida do autoritarismo de 1964 a 1982.
E, há 18 anos, estamos num regime aberto, podendo presenciar a cassação de um presidente e, por incrível que pareça, a assunção de seu vice, que conclui o mandato. Eleições livres elegem novo mandatário, que se reelege sem traumas. Aparentemente, o regime democrático denotava consolidação. Não é, entretanto, o que a pesquisa revelou. Cabe, aqui, a confirmação de outro fato que tenho ressaltado: quando ocorre o chamado "golpe de Estado", vem ele amparado pela vontade popular, e não apenas pela força dos "golpistas". Não quero ser catastrofista, porém creio ser oportuno fazer um alerta sobre o significado da pesquisa, que revela o estado de espírito do povo brasileiro.
De nada vale garantir ao cidadão o direito de livre manifestação, de associação, de livre circulação, de livre convicção política e religiosa, se lhe falta pão.
Locupletamo-nos, como é sabido, da democracia política. Desfrutamos dela.
O discurso, às vezes, extravasa o exagero. Todos podem criticar a todos, se assim o desejarem. Não temos, pois, carência do arcabouço libertário. Em contrapartida, sobram carências em outro eixo, o da democracia social, a do "pão sobre a mesa". Essa expressão quer significar a democracia de conteúdo social, voltada para o escopo do desenvolvimento, do emprego, da segurança pública, da saúde e da educação. Em síntese: a democracia provedora de cidadania, de condições dignas de vida. Quando o jogo democrático é incapaz de influir na distribuição de riqueza, perde sua maior fonte de legitimação.
A estabilidade da moeda, é certo, foi uma grande conquista para o país. O Brasil, com a economia estabilizada, voltou a se fazer respeitar. Mas, no plano social, o país ainda precisa avançar muito. Basta um olhar sobre a moldura dos contrastes: 1% da população detém mais de 50% do estoque de riqueza do país; cerca de 40% da população urbana vive abaixo da linha de pobreza.
Uma democracia sem igualdade de oportunidades e que não se apresenta como instrumento para diminuir aberrantes distâncias sociais é mera caricatura de si mesma. Outro aspecto que merece atenção é o conceito do império da lei como alicerce maior da democracia. É a lei que organiza, determina e dá estabilidade às relações sociais. Saber o que dizem a Constituição e as leis -e aplicá-las- é saber quais são "as regras do jogo". Se alguém contrata, investe, produz, constitui família, emprega-se, saberá quais são as normas regentes de seu ato, que só será permanente se o sistema jurídico for estável e obedecido.
A que, porém, temos assistido? À completa desobediência da lei. Exemplifico: a Constituição determina a harmonia entre os Poderes. Nem sempre é obedecida. Nada contra o MST. Como seus integrantes, porém, se julgam no "direito", contra a lei, de invadir terras, também alguém poderá dizer que a cobrança do pedágio é inconstitucional e derrubar as barreiras com seu carro, sem buscar solução no Judiciário. Poderá simplesmente fazer "a sua lei" e contrariar o que as leis do país determinam.
Alguém poderá alegar que a lei, às vezes, é injusta e não deve ser cumprida. É uma concepção. Equivocada, porém, pois gera desordem, que é a violação da ordem legal. Se a lei é injusta, a sociedade há de buscar sua modificação pelos canais competentes, entre os quais os partidos políticos com representação nas Casas Legislativas. Tudo isso deriva da nossa formação e da nossa cultura. Basta ver como somos pródigos em jogar papel na rua, quebrar orelhões, pichar prédios, avançar sinais vermelhos, caminhar em pista de ciclista ou ciclista pedalar em área de pedestres. Fala-se muito em "tolerância zero". Ora, o que ela significa, se não apenas o cumprimento radical da lei? Afinal, pode-se quebrar vidraças, pichar prédios, fazer baderna nas ruas? Não. A lei não o tolera. Isso é "tolerância zero".
Essas deficiências e distorções acabam gerando falta de crença no sistema democrático. Daí pregar-se a necessidade de um dirigente autoritário, forte e raivoso para pôr ordem na casa. É o risco de descambarmos numa ditadura. Autoridade é aquela que aplica rigorosamente a vontade da lei, e não aquela que impõe a sua vontade ditatorial.
Não podemos perder a oportunidade de consolidar a nossa democracia. Nunca, como agora, combateu-se com tanta eficácia a corrupção. Se ela induz as pessoas a achar que ninguém é confiável, é certo que uma boa pregação há de revelar que esse combate é necessário para colocar o país nos trilhos da "res pública", da coisa pública.
Alguém poderá perguntar: "E meu emprego, minha segurança, meu direito de andar tranquilamente pelas ruas, onde ficam?". É importante lembrar que não são mais leis que solucionarão o problema (há um velho hábito no país: existe um problema, faça-se uma lei). Esquece-se que a questão é de execução, de administração. Segurança pública? Aloquem-se e invistam-se recursos. Só para exemplificar: os distritos policiais, há muito tempo, transformaram-se em minipresídios, quando sua tarefa é apenas a de reter o preso em espera de julgamento. Há 180 mil presos no Brasil, mais de 100 mil mandados de prisão sem cumprimento. (Nos EUA, vale lembrar, há 2 milhões de presos). A solução? Presídios, agentes especializados, unificação dos meios operacionais das Polícias Civil e Militar, remuneração adequada, operações conjuntas de ambas as polícias, meios para entregar a segurança pública à competência administrativa municipal. Excetuada a última sugestão, o resto depende de investimento. Bem fariam os autores do Plano de Segurança Pública se atentassem para tais questões.
É claro que o combate às origens da criminalidade deve ser de absoluta prioridade. E aí chegamos ao campo do desenvolvimento. Uma das ferramentas? A reforma tributária. Com ela, viria a desoneração do setor produtivo, o que propiciaria o aumento da produção e a consequente ampliação do emprego. É lamentável constatarmos que o sonho hoje da maioria dos empresários nacionais é vender sua empresa para a grande empresa estrangeira. Se isso ocorre, alguma coisa não vai bem. Saúde? Educação? Recursos para combater a miséria que assola grande parte do país.
O que precisamos mesmo é de ordem e de progresso, valores que os nossos primeiros republicanos viram como síntese necessária para a consolidação do país. A ordem é o cumprimento da lei; o progresso é a concretização de metas sociais para a consolidação da cidadania e da nação.


Michel Temer,59, advogado, é deputado federal (PMDB-SP) e presidente da Câmara dos Deputados. Foi secretário da Segurança (governos Montoro e Fleury).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Eloi S. Garcia: Vacinas para o futuro

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.