São Paulo, quarta-feira, 01 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Clemenceau, a guerra e o jornalismo

ALON FEUERWERKER

A Primeira Guerra Mundial (1914-18) foi marcada pela grande carnificina da "guerra de trincheiras" na frente ocidental. Grande e inútil. Soldados alemães e franceses tinham ordens de ganhar terreno a todo custo. Combatiam ferozmente e morriam como moscas, sem nenhum resultado militar significativo. Georges Clemenceau, que governava a França, avaliou assim, ao final do conflito, o desempenho dos seus comandantes: "A guerra é coisa importante demais para ser deixada por conta dos generais".
Entre nós, segue a polêmica sobre o projeto da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) para criar os conselhos regionais e o Conselho Federal de Jornalismo. A reação à proposta tem sido forte. Percebe-se que sociedade e imprensa consideram o jornalismo atividade relevante demais para deixar sua regulamentação legal nas mãos apenas das entidades sindicais dos jornalistas.
Isso é bom. Se os limites aos jornalistas e à atividade jornalística confundem-se com os limites à liberdade de imprensa, as leis sobre como a imprensa deve funcionar e quanto deve ter de liberdade precisam surgir com participação e apoio maciços da sociedade e da própria imprensa. Para que tenham alguma viabilidade.
As opiniões neste texto são pessoais. Não guardam necessariamente relação com políticas ou diretrizes do governo a que tenho o privilégio de servir. Pensei em escrever sobre o tema após o convite público do colega Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa da Presidência da República ("Ao debate, caros colegas", Folha, 10/8). Concordo com ele quando diz que podemos aproveitar a oportunidade "para discutir a própria imprensa e, quem sabe, chegarmos a um consenso sobre as regras do jogo". Estão em discussão três aspectos da atividade jornalística: o ingresso na profissão, o código de ética do profissional e o controle da sociedade sobre o jornalismo.


No campo da ética, sugiro um comitê e um código nacionais de auto-regulação jornalística


O ingresso na profissão deve ser livre, como prevê a Constituição e como as decisões da Justiça têm reafirmado.
Quem se opõe apresenta, em resumo, três argumentos: a exigência do diploma de jornalismo estimularia a qualidade da atividade jornalística, ajudaria a prevenir o mau uso da condição de jornalista e impediria o aviltamento do mercado de trabalho. Parece lógico. Infelizmente, não encontra eco na realidade. Desafio qualquer um a demonstrar com números que jornalistas sem diploma de jornalismo errem mais, sejam menos éticos ou aceitem salários menores. Simplesmente não é o que acontece.
Na publicidade não há reserva de mercado para os portadores do diploma. Aliás, não é necessário diploma nenhum para entrar no ramo. Por acaso o mercado para publicitários está aviltado ou a produção publicitária brasileira é de baixa qualidade?
Alentador é que, mesmo sem a reserva de mercado, os jovens continuam à procura das escolas de publicidade. No vestibular para a USP neste ano, a carreira foi mais procurada que jornalismo. Publicidade recebeu 3.090 candidatos para 50 vagas, concorrência de 61,8 por vaga. Jornalismo teve 2.863 concorrentes para 60 vagas, índice de 47,72 por vaga (www.fuvest.br).
Um efeito benéfico da liberalização do ingresso na profissão será aumentar o número de jornalistas sindicalizáveis e oxigenar a vida sindical. Dezenove de cada 20 jornalistas não votaram na última eleição para a Fenaj. Isso não tira a legitimidade ou representatividade do órgão. Mas é uma dura realidade, que não se pode ignorar.
No campo da ética, sugiro um comitê e um código nacionais de auto-regulação jornalística, nos moldes do que já acontece no mercado publicitário. O comitê teria representantes de jornalistas, empresas de comunicação e entidades de defesa do consumidor. Deveria ser uma organização não-governamental. Não precisaria ser objeto de legislação específica. Ficaria proibido de ter qualquer relação de dependência com governos. Exerceria uma espécie de "vigilância ética" sobre a atividade jornalística. Provocado, pronunciar-se-ia sobre o que considerasse antiético ou imoral, ainda que não necessariamente ilegal. O código poderia ser submetido a um referendo nacional de jornalistas. O comitê teria apenas o papel de fazer recomendações, aprovadas por pelo menos dois terços de seus membros. O quorum alto forçaria decisões quase consensuais do colegiado, para evitar que se tornasse palco de disputas corporativas entre jornalistas e veículos.
Não faz sentido, por exemplo, um direito de resposta esperar anos por decisão judicial, quando poderia ser concedido a partir da autoridade moral de uma instituição reconhecida pelos jornalistas, pelas empresas e pela sociedade. Quanto ao controle social sobre a atividade jornalística, deve ser feito do mesmo modo que a sociedade controla todas as outras coisas: por leis aprovadas no Congresso Nacional e aplicadas pelo Poder Judiciário, sob a vigilância de uma imprensa totalmente livre.
As revoluções Francesa e Americana legaram-nos, há mais de 200 anos, a democracia representativa, com partidos e imprensa livres. São conquistas universais, da civilização. Habituemo-nos a elas. Onde estão em vigor há mais tempo do que no Brasil, os resultados têm sido bastante bons.

Alon Feuerwerker, 48, jornalista, é subchefe de Assuntos Parlamentares da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República. Foi secretário de Redação da Folha e diretor do UOL.


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