São Paulo, sexta-feira, 01 de setembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O preço do contra-ataque

MÁRIO MAGALHÃES

Ao tentar restabelecer a autoridade nos presídios, o Estado se vê intimidado pela ampliação da violência com métodos do terror

DO TEMPO em que os cidadãos paulistas assistiam olimpicamente à degradação da segurança pública no Rio de Janeiro, alheios como se uma vacina os imunizasse contra o vírus da desgraça, ficou um episódio com lições valiosas. Parece coisa antiga, de outra geração, mas foi anteontem: em 30 de setembro de 2002, traficantes de drogas levaram o comércio a cerrar as portas, escolas a dispensar os alunos e ônibus a se esconder nas garagens.
Amplificadas por boatos, as ameaças dos criminosos turvaram o Rio com medo e pânico. Sem imaginar a barbárie que castigaria São Paulo em poucos anos, os cariocas suspeitaram que sua cidade tateara o fundo do poço da insegurança.
A baderna -sem mortos- foi uma reação à iniciativa do governo fluminense de isolar alguns presos do Comando Vermelho no quartel do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Por celular, um detento de Bangu 1 mandou infernizar o Rio. Um panfleto da organização anunciara: "Daqui pra frente, [a] qualquer ação arbitrária com nossos irmãos na cadeia será dada resposta à altura (na bala)".
O Rio parou seis dias antes das eleições para o Planalto e o Guanabara. A governadora e candidata Benedita da Silva apontou "conotação política" no episódio. Certa ou não -o olhar retrospectivo tende a lhe dar razão-, os concorrentes tiraram uma casquinha ao malhá-la. Inexistiu, contudo, explicação convincente para o fato de, mesmo informado sobre a iminência do confronto, o Estado não se preparar para evitá-lo e combatê-lo.
As semelhanças do Rio de 2002 com o Estado de São Paulo de 2006 nascem no calendário eleitoral e crescem no léxico das quadrilhas: o panfleto do Comando Vermelho denunciava a "opressão"; o manifesto do Primeiro Comando da Capital na TV falou em "oprimidos" nos cárceres.
Como no Rio, o estopim da primeira das três ondas de ataques do PCC foi a transferência de presos. Da terceira, foram rumores sobre restrições à saída da prisão no Dia dos Pais. Nos dois Estados, a ordem partiu dos detentos que viam sob risco a prática, ultrajante no Estado de Direito, de comandar o crime de trás das grades.
Eis a sinuca: ao tentar restabelecer a autoridade nos presídios, o Estado se vê intimidado pela ampliação inédita da violência com métodos do terror. Às vésperas dos pleitos, o poder de fogo dos criminosos se torna chantagem política. Mesmo com respostas diferentes à crise -Benedita apelou ao Exército, Cláudio Lembo recusou-o-, é inverossímil que as decisões tenham obedecido a critérios técnicos à margem de interesses eleitorais.
A sociedade que sustenta o aparato de segurança e à qual ele tem o dever constitucional de proteger perdeu quando o Estado não exerceu a prerrogativa de controlar as penitenciárias. Para sufocar a ação criminosa nas cadeias, golpeando o crime também longe delas, é possível que os cidadãos percam outra vez, com ataques como os deste ano. Os paulistas se dispõem, em nome do inegável benefício futuro, a aceitar o preço do contra-ataque das autoridades ao PCC?
A questão não ofusca aspectos essenciais do balanço sobre a inépcia e a corrupção no aparelho de Estado. A declaração de um delegado da cúpula policial de São Paulo em 2002 escancara o fiasco: "O PCC é uma organização falida".
Encarar o dilema -restaurar a autoridade ou dispensá-la em nome da "calmaria"- também não implica ignorar a pobreza e a desigualdade social como vitaminas das organizações criminosas. Nem diminui a relevância de condenar práticas de humilhação, tortura e homicídio desenvolvidas por segmentos de servidores cujo comportamento é típico de esquadrão da morte.
Como a história não começou ontem, vale revisitar a vizinhança. Em um lance de endurecimento da governadora Rosinha Matheus com a população carcerária, o Comando Vermelho botou o bloco na rua às vésperas do Carnaval de 2003. Até ônibus com passageiros foram queimados.
Hoje, os presídios do Rio vivem relativa tranqüilidade. O motivo pode ser resumido nos celulares e rádios que continuam a permitir a comunicação dos detentos. No primeiro esforço para acabar com a tolerância da administração penitenciária, sabe-se lá -pior, imagina-se- o que pode acontecer.
É um direito acreditar que Lembo não quis a transferência de presos do PCC para o presídio federal de Catanduvas devido a "problemas de logística" para a tomada de depoimentos. É igual direito pensar que o governador teme a quarta onda de ataques. Seu governo acerta ao buscar a reconquista de um território público. E erra quando fraqueja, temeroso da reação.


MÁRIO MAGALHÃES, 42, repórter especial da Folha, é autor do livro "O Narcotráfico" (Publifolha, 2000).

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