|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
O preço do contra-ataque
MÁRIO MAGALHÃES
Ao tentar restabelecer a autoridade nos presídios, o Estado se vê intimidado pela ampliação da violência com métodos do terror
DO TEMPO em que os cidadãos
paulistas assistiam olimpicamente à degradação da segurança pública no Rio de Janeiro,
alheios como se uma vacina os imunizasse contra o vírus da desgraça, ficou
um episódio com lições valiosas. Parece coisa antiga, de outra geração,
mas foi anteontem: em 30 de setembro de 2002, traficantes de drogas levaram o comércio a cerrar as portas,
escolas a dispensar os alunos e ônibus
a se esconder nas garagens.
Amplificadas por boatos, as ameaças dos criminosos turvaram o Rio
com medo e pânico. Sem imaginar a
barbárie que castigaria São Paulo em
poucos anos, os cariocas suspeitaram
que sua cidade tateara o fundo do poço da insegurança.
A baderna -sem mortos- foi uma
reação à iniciativa do governo fluminense de isolar alguns presos do Comando Vermelho no quartel do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Por
celular, um detento de Bangu 1 mandou infernizar o Rio. Um panfleto da
organização anunciara: "Daqui pra
frente, [a] qualquer ação arbitrária
com nossos irmãos na cadeia será dada resposta à altura (na bala)".
O Rio parou seis dias antes das eleições para o Planalto e o Guanabara. A
governadora e candidata Benedita da
Silva apontou "conotação política" no
episódio. Certa ou não -o olhar retrospectivo tende a lhe dar razão-, os
concorrentes tiraram uma casquinha
ao malhá-la. Inexistiu, contudo, explicação convincente para o fato de,
mesmo informado sobre a iminência
do confronto, o Estado não se preparar para evitá-lo e combatê-lo.
As semelhanças do Rio de 2002
com o Estado de São Paulo de 2006
nascem no calendário eleitoral e crescem no léxico das quadrilhas: o panfleto do Comando Vermelho denunciava a "opressão"; o manifesto do
Primeiro Comando da Capital na TV
falou em "oprimidos" nos cárceres.
Como no Rio, o estopim da primeira das três ondas de ataques do PCC
foi a transferência de presos. Da terceira, foram rumores sobre restrições
à saída da prisão no Dia dos Pais. Nos
dois Estados, a ordem partiu dos detentos que viam sob risco a prática,
ultrajante no Estado de Direito, de
comandar o crime de trás das grades.
Eis a sinuca: ao tentar restabelecer
a autoridade nos presídios, o Estado
se vê intimidado pela ampliação inédita da violência com métodos do terror. Às vésperas dos pleitos, o poder
de fogo dos criminosos se torna chantagem política. Mesmo com respostas
diferentes à crise -Benedita apelou
ao Exército, Cláudio Lembo recusou-o-, é inverossímil que as decisões tenham obedecido a critérios técnicos à
margem de interesses eleitorais.
A sociedade que sustenta o aparato
de segurança e à qual ele tem o dever
constitucional de proteger perdeu
quando o Estado não exerceu a prerrogativa de controlar as penitenciárias. Para sufocar a ação criminosa
nas cadeias, golpeando o crime também longe delas, é possível que os cidadãos percam outra vez, com ataques como os deste ano. Os paulistas
se dispõem, em nome do inegável benefício futuro, a aceitar o preço do
contra-ataque das autoridades ao
PCC?
A questão não ofusca aspectos essenciais do balanço sobre a inépcia e a
corrupção no aparelho de Estado. A
declaração de um delegado da cúpula
policial de São Paulo em 2002 escancara o fiasco: "O PCC é uma organização falida".
Encarar o dilema -restaurar a autoridade ou dispensá-la em nome da
"calmaria"- também não implica ignorar a pobreza e a desigualdade social como vitaminas das organizações
criminosas. Nem diminui a relevância de condenar práticas de humilhação, tortura e homicídio desenvolvidas por segmentos de servidores cujo
comportamento é típico de esquadrão da morte.
Como a história não começou ontem, vale revisitar a vizinhança. Em
um lance de endurecimento da governadora Rosinha Matheus com a população carcerária, o Comando Vermelho botou o bloco na rua às vésperas do Carnaval de 2003. Até ônibus
com passageiros foram queimados.
Hoje, os presídios do Rio vivem relativa tranqüilidade. O motivo pode
ser resumido nos celulares e rádios
que continuam a permitir a comunicação dos detentos. No primeiro esforço para acabar com a tolerância da
administração penitenciária, sabe-se
lá -pior, imagina-se- o que pode
acontecer.
É um direito acreditar que Lembo
não quis a transferência de presos do
PCC para o presídio federal de Catanduvas devido a "problemas de logística" para a tomada de depoimentos. É
igual direito pensar que o governador
teme a quarta onda de ataques. Seu
governo acerta ao buscar a reconquista de um território público. E erra
quando fraqueja, temeroso da reação.
MÁRIO MAGALHÃES, 42, repórter especial da Folha, é
autor do livro "O Narcotráfico" (Publifolha, 2000).
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Antonio Negri e Giuseppe Cocco: A constituição da liberdade Índice
|