São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2004

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JOSÉ SERRA

Com as duas mãos

A agropecuária brasileira -ou o "agronegócio", como passou a ser chamada nos últimos anos- tem sido o setor mais dinâmico de nossa economia e tem dado contribuições decisivas para estabilizar os preços e atenuar as fraquezas do balanço de pagamentos. Para isso, têm concorrido a generosa disponibilidade de terras, a grande capacidade dos trabalhadores e empresários rurais (inclusive na agricultura familiar) e as condições favoráveis da demanda externa. Mas o ativismo governamental foi decisivo, através das pesquisas da Embrapa e de outros institutos públicos e de iniciativas do governo Fernando Henrique, como as renegociações periódicas de dívidas, os empréstimos com juros fixos e subvencionados, o Moderfrota com juros baixos para a compra de equipamentos e o Programa de Apoio à Agricultura Familiar.
Essa história de sucesso confirma que as economias modernas, para avançar, precisam ser impelidas com duas mãos, a inquieta do mercado e a ativa e ordenadora do Estado. Mercado foi o primeiro conceito econômico que assimilei. Mesmo antes de ser alfabetizado, eu sabia que meu pai trabalhava num mercado, no caso, o Mercado Municipal de São Paulo, que freqüentei até minha adolescência. Aprendi que lá se encontravam produtores e consumidores, muitas vezes por meio de intermediários, para comercializar produtos alimentícios. E que os preços oscilavam, a natureza mais ou menos perecível de cada produto afetava estoques e vendas, e as informações eram fundamentais para orientar vendedores e compradores.
Talvez por essa origem e depois por minha formação acadêmica de economista, sinto-me incomodado com o conceito estreito de mercado que tem prevalecido no Brasil. Em nenhum lugar do mundo, o mercado tem sido entendido, tanto quanto aqui, apenas como mercado financeiro internacional e suas projeções na economia doméstica. Lá fora e aqui, o tal mercado é também da cenoura, da banana, do aço, das roupas, dos automóveis (em geral, os empresários desses setores são os chamados de "chorões" pelo governo). Alguns mercados, aliás, tendem a sofrer freqüentes desarranjos, pois são muito imperfeitos. Dentre eles, o financeiro. Isto, nos meios acadêmicos do hemisfério Norte, é verdade quase estabelecida e sua demonstração gerou até a conquista de prêmios Nobel, como o do brilhante economista Joseph Stiglitz.
No mundo contemporâneo, a prosperidade econômica exige que se trabalhe com o mercado, à procura de eficiência e crescimento. Mas o PT, convertido tardiamente a essa tese, se confunde. À frente do governo federal, em vez de trabalhar com o mercado, parece trabalhar para o mercado, especialmente o financeiro. Essa visão não vai dar certo a médio e longo prazos, havendo o risco de um duplo prejuízo: primeiro, um crescimento econômico instável e, na média, lento; segundo, a volta de concepções estatizantes, adversas ao mercado.
A virtude está em combinar, de forma adequada, mercado e ação do Estado, pois o desenvolvimento não chegará espontaneamente, na base de discursos terceiro-mundistas e manifestações de amizade ao mercado financeiro internacional. O espontaneísmo em lugar nenhum do mundo levou, por si só, ao desenvolvimento sustentado. Este sempre resultou de políticas deliberadas e específicas, até porque não existe uma receita universal para atingi-lo. Nessa matéria, cada país é um caso diferente, dependendo de sua geografia, de sua história, de sua cultura e de sua sociedade.


José Serra escreve às segundas nesta coluna.


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