|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Desaforo
ARIANO SUASSUNA
Um dia, sendo nós ainda jovens, dois
amigos meus meteram na cabeça que
eu deveria fazer um curso de literatura
em algum país europeu. Falaram com
o pessoal da Aliança Francesa, conseguiram passagem, hospedagem e vaga
num curso em Paris. Já estavam cuidando do passaporte quando um deles
me disse: "Você tem que ir porque,
sem um curso na Europa, nenhum escritor brasileiro pode conhecer verdadeiramente o Brasil".
Na mesma hora eu desmanchei a viagem. Que mistério seria aquele? Se fosse assim, um jovem escritor alemão
também jamais poderia entender a
Alemanha sem fazer um curso no Brasil. E daí por diante passei a recusar
todos os convites que recebia para viajar. Não queria incorrer no erro dos
que vão fazer cursos fora e nunca mais
se curam: ficam para sempre desajustados, porque nem são mais brasileiros
nem se tornaram alemães ou americanos, como talvez sonhassem antes de
ir.
Além disso, detesto viajar, e não vejo
nenhuma necessidade de estar pra lá e
pra cá, afastando-me do sossego da
minha casa e do convívio com a família, tão importante para mim. Existem,
até, alguns lugares que eu teria gosto
de conhecer -Portugal, a Espanha, o
norte da África, a Sicília, a Grécia, a
França e outros. Mas estão muito longe. Eu iria, contente, ver o Mediterrâneo se ele fosse ali na Paraíba, no Rio
Grande do Norte ou em Alagoas. E tem
mais: de todos os lugares que citei,
meu preferido é Portugal, por ser o
único país da Europa onde o povo tem,
como nós, o bom senso de falar português.
É por isso, então, que nunca saí do
Brasil. Mesmo assim, no ano passado,
a propósito do lançamento do "Romance d'A Pedra do Reino" em Paris,
um jornalista francês disse que eu sou
"extremamente culto". Confesso que
fiquei orgulhoso. Não por ver reconhecida minha suposta cultura, mas por
ter me tornado "culto" aqui: tal cultura, se existe, foi adquirida exclusivamente pelo estudante e professor, que
fui, da Universidade Federal e da Católica, ambas de Pernambuco.
Pois bem: com data de 4 de fevereiro
deste ano recebi, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, sediado em
Washington, um convite para participar do "Foro Desenvolvimento e Cultura", que vai se realizar em Paris nos
próximos dias 11 e 12 de março. Com
palavras desvanecedoras para mim,
afirma-se, na carta, que minha contribuição "enriquecerá de maneira relevante as discussões e constituirá um
testemunho do valor que a América
Latina e o Caribe atribuem à sua rica
herança cultural". Mas avisa-se, no
fim, que o banco não consta com uma
verba para financiar a participação dos
debatedores, motivo pelo qual cada
um de nós "deverá cobrir seus gastos
de transporte, alojamento e permanência em Paris".
Ao tomar conhecimento do aviso,
lembrei-me de Tobias Barreto, que,
como eu, era um não-pernambucano
de formação recifense. Certa vez, foi
ele visitado pelos diretores de uma respeitável instituição cultural de Pernambuco. Chamando-o de "mestre",
comunicaram-lhe que, por unanimidade, ele fora escolhido para pertencer
a ela. Declarando-se muito honrado,
Tobias aceitou. Mas quando acrescentaram que, no fim do mês, o encarregado das cobranças viria receber a primeira mensalidade, "o mestre", que
era um desaforado, cortou logo. Disse:
"Ah, e é pago, é? Então desisto: ser
besta de graça, ainda vai, mas pagar
pra ser besta é demais!".
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Jenairo - Carlos Heitor Cony: Os estudantes de Minas Próximo Texto: Frases
Índice
|