São Paulo, sexta-feira, 02 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O golpe de 1964 e a democracia

BORIS FAUSTO

O golpe de 1964 provocou um profundo desconcerto entre os intelectuais de esquerda e entre o que se chamava então de setores progressistas da sociedade. Esse sentimento se explica não apenas pelo impacto de uma derrota e pelo início da repressão. Era preciso também entender o que acontecera, e o entendimento passava pela quebra de muitas ilusões.
Do ponto de vista político, havia nesses setores a crença generalizada de que a aliança em que se sustentava o populismo, tendo produzido bons frutos em décadas passadas, ainda tinha um papel central na estabilidade do sistema político. Viu-se, porém, que a aliança ruíra, não apenas sob o peso do golpe, mas porque seus integrantes mudaram de rumo ou não tinham a força que se imaginava. O Estado e o governo tinham entrado em uma profunda crise; a burguesia nacional, definida como progressista, não se caracterizava por uma essência imutável. Diante do maior ímpeto dos movimentos sociais e da verbiagem radical do populismo, abandonou o governo Jango, em busca de outros portos, mais seguros.
Por fim, a classe operária organizada desgastara-se nas greves políticas, quase sempre manipuladas pelas cúpulas sindicais, pelos políticos trabalhistas ou comunistas, e, de qualquer forma, não dispunha de mínimas condições para se opor a um movimento militar.


Os atores políticos, com raras exceções, ignoraram a democracia como um valor a ser preservado


No plano institucional, enraizara-se a crença de que as Forças Armadas -o Exército, em particular- eram majoritariamente sintonizados com "os interesses populares" e de que o decantado "dispositivo militar" saberia destroçar uma conspiração golpista de direita. Tal crença, com leitura adaptada, vinha de longe, pelo menos dos tempos do tenentismo da década de 20, quando os escritos de "tenentes", militares ou civis, falavam do Exército como a "síntese das aspirações de nosso povo". A verdade, como os fatos demonstraram, é que, se a cúpula das Forças Armadas, na sua maioria, mostrara a disposição de sustentar o regime democrático instalado no país em 1945, acabaria por aderir à conspiração contra o regime, originária de seu núcleo duro, quando o valor que sempre lhe foi mais caro foi violado, qual seja, a ordem e a hierarquia militar.
Na esfera econômica, o desenvolvimento autônomo era a verdade assentada dos anos que antecederam o golpe e a essa suposta verdade correspondiam o protecionismo estatal, a ênfase nas amplas possibilidades do mercado interno, a relativa ou total despreocupação com as taxas de inflação. Logo ficou claro, a partir da ação da dupla Campos-Bulhões, que era possível conter a inflação e estender os limites do "estrangulamento externo", criando as condições para o intenso crescimento, nos anos do chamado "milagre brasileiro".
A ditadura não correspondia ao atraso, como alguns imaginaram, ao prever a possibilidade de "pastorização" do Brasil, mas assumia o caminho do desenvolvimento, fato que a legitimou em muitos setores da sociedade por vários anos, não obstante as violências de toda ordem, sobretudo após a decretação do AI-5. Os problemas econômicos surgiram em meados dos anos 70, quando o general Geisel combinou a abertura política com a rigidez do modelo de substituição de importações, acreditando que o Brasil era uma "ilha de prosperidade" em meio à recessão mundial.
Diga-se de passagem que um minúsculo setor de extrema esquerda, dividido em várias correntes, não participava das ilusões populistas. Mas sua crença nas virtudes revolucionárias da aliança operário-camponesa, traída pelo oportunismo das cúpulas dirigentes, não passava de uma construção onírica transposta para o Brasil.
A história do golpe de 64 e do regime militar encerra uma lição mais grave do que as apontadas, por suas projeções de longo prazo. Quero me referir ao fato de que, na conjuntura daqueles primeiros anos da década de 60, os atores políticos, sindicais ou militares, com raras exceções, ignoraram a democracia como um valor a ser preservado, apesar das difíceis circunstâncias. A equivocada percepção nos setores do governo e da esquerda de que a democracia era só um instrumento a serviço de ideais maiores de reforma ou revolução social favoreceu o clima de exceção e engrossou os setores da direita conspirativa que, desde a renúncia irresponsável de Jânio, viam na "purificação da ordem pública" a saída inexorável para a crise.
Quem viveu os longos anos do regime militar sabe o que significam a supressão de direitos, a censura aos órgãos de informação, o medo de arbitrariedades e da tortura que caracterizou aquele tempo. A ditadura custou vidas e sofrimento, e a redemocratização, em novas bases, abriu para o país caminhos que nem sempre se soube aproveitar.
Seja como for, as gerações mais novas tomam o clima de liberdade em que vivemos hoje -falo da cidadania integrada à vida social- como um dado da natureza, e não como um ganho imenso que se deveu à sensibilidade de uma parte das elites e à mobilização da sociedade. E há também quem sonhe com um "governo forte", capaz de dar um rumo ao país.
O quadro brasileiro de hoje é muito diferente do de 1964 e não há crise institucional, pelo menos à vista. Mas é bom lembrar a história, pois ela reaviva a memória de um passado negativo, nem tão distante, nem tão ausente.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional, da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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