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HÉLIO SCHWARTSMAN
Questão de fé
ENQUANTO o Brasil se prepara
para receber a visita do papa,
cuja missão é ensinar aos homens os caminhos para o reino de
Deus, cientistas tentam mostrar
por quais caminhos Deus acabou
entrando no reino dos homens.
Biólogos, antropólogos e filósofos que tentam compreender a religião do ponto de vista evolucionista dividem-se em dois grupos: o dos
que nela vêem alguma vantagem
adaptativa, como azeitar as interações sociais, e o dos que a consideram um simples subproduto de outros mecanismos cerebrais. A crer
nesta versão, Deus não passaria de
um acidente neurológico.
Defensores dessa tese estão em
ofensiva, lançando obras que indignam os espíritos mais pios. Falo de
livros como "The God Delusion",
de Richard Dawkins, "The End of
Faith", de Sam Harris, e "Breaking
the Spell", de Daniel Dennett, entre outros menos ruidosos.
Mais do que imprecar contra
Deus (o que, numa democracia, é
legítimo, embora um pouco fastidioso), esses autores trazem idéias
interessantes para explicar a universalidade do fenômeno religioso.
Para Dawkins, por exemplo, a religião seria o efeito colateral de uma
propensão exagerada a crer, que teria valor adaptativo ao fazer com
que crianças obedeçam a seus pais
sem considerar se o que eles dizem
faz ou não sentido. Essa confiança
incondicional pouparia os jovens
de atirar-se em rios infestados de
crocodilos e outras ameaças que
poderiam custar-lhes a vida.
Na mesma linha, argumenta-se
que o homem tem uma forte tendência a inferir a presença de seres
animados onde não existe nada. A
vantagem propiciada por essa preferência neurológica pelo equívoco
é clara. Se eu saio correndo por ter
tomado uma sombra por fera, faço
o papel de bobo, mas não perco nada de importante. Se, por outro lado, aplico algum ceticismo e exijo
provas, evito dar uma de palhaço,
mas corro o risco de ser devorado.
Ver agentes-fantasmas ao lado
de outros módulos cerebrais como
atribuir causalidade a tudo e projetar-se no lugar de outros é o que
basta para transformar o gênero
humano numa espécie amedrontada, supersticiosa e pronta a crer em
todo tipo de ser imaginário.
Antes de enterrar Deus, porém,
vale lembrar que os religiosos, calejados por séculos de sutis discussões metafísicas, sempre podem
sustentar que o homem com todas
as suas estruturas cerebrais e inclinações foi concebido pelo Criador
exatamente nesta forma. Não é um
argumento esclarecedor, mas basta para fazer a discussão regredir
ao infinito. Por mais que a neurociência avance, ela jamais excluirá
de modo irrefutável a existência de
um demiurgo sobrenatural.
O impasse não deixa de ser uma
boa notícia no que diz respeito à
democracia. Crer ou não crer torna-se, dependendo do apetite de
cada um, uma opção -a gôndola
central daquilo que o papa chama
com horror de supermercado da fé.
HÉLIO SCHWARTSMAN é editorialista da Folha
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