São Paulo, segunda-feira, 02 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

HÉLIO SCHWARTSMAN

Questão de fé

ENQUANTO o Brasil se prepara para receber a visita do papa, cuja missão é ensinar aos homens os caminhos para o reino de Deus, cientistas tentam mostrar por quais caminhos Deus acabou entrando no reino dos homens.
Biólogos, antropólogos e filósofos que tentam compreender a religião do ponto de vista evolucionista dividem-se em dois grupos: o dos que nela vêem alguma vantagem adaptativa, como azeitar as interações sociais, e o dos que a consideram um simples subproduto de outros mecanismos cerebrais. A crer nesta versão, Deus não passaria de um acidente neurológico.
Defensores dessa tese estão em ofensiva, lançando obras que indignam os espíritos mais pios. Falo de livros como "The God Delusion", de Richard Dawkins, "The End of Faith", de Sam Harris, e "Breaking the Spell", de Daniel Dennett, entre outros menos ruidosos. Mais do que imprecar contra Deus (o que, numa democracia, é legítimo, embora um pouco fastidioso), esses autores trazem idéias interessantes para explicar a universalidade do fenômeno religioso.
Para Dawkins, por exemplo, a religião seria o efeito colateral de uma propensão exagerada a crer, que teria valor adaptativo ao fazer com que crianças obedeçam a seus pais sem considerar se o que eles dizem faz ou não sentido. Essa confiança incondicional pouparia os jovens de atirar-se em rios infestados de crocodilos e outras ameaças que poderiam custar-lhes a vida.
Na mesma linha, argumenta-se que o homem tem uma forte tendência a inferir a presença de seres animados onde não existe nada. A vantagem propiciada por essa preferência neurológica pelo equívoco é clara. Se eu saio correndo por ter tomado uma sombra por fera, faço o papel de bobo, mas não perco nada de importante. Se, por outro lado, aplico algum ceticismo e exijo provas, evito dar uma de palhaço, mas corro o risco de ser devorado.
Ver agentes-fantasmas ao lado de outros módulos cerebrais como atribuir causalidade a tudo e projetar-se no lugar de outros é o que basta para transformar o gênero humano numa espécie amedrontada, supersticiosa e pronta a crer em todo tipo de ser imaginário.
Antes de enterrar Deus, porém, vale lembrar que os religiosos, calejados por séculos de sutis discussões metafísicas, sempre podem sustentar que o homem com todas as suas estruturas cerebrais e inclinações foi concebido pelo Criador exatamente nesta forma. Não é um argumento esclarecedor, mas basta para fazer a discussão regredir ao infinito. Por mais que a neurociência avance, ela jamais excluirá de modo irrefutável a existência de um demiurgo sobrenatural.
O impasse não deixa de ser uma boa notícia no que diz respeito à democracia. Crer ou não crer torna-se, dependendo do apetite de cada um, uma opção -a gôndola central daquilo que o papa chama com horror de supermercado da fé.


HÉLIO SCHWARTSMAN é editorialista da Folha


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Ruy Castro: Irretocável
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.