São Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A força do direito versus o direito da força

FLAVIA PIOVESAN

No último dia 11 de abril, o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, alcançou a ratificação de 66 Estados, ultrapassando, assim, o consenso mínimo necessário para a sua entrada em vigor. Embora o Brasil tenha assinado o tratado em fevereiro de 2000, ainda não o ratificou, estando a matéria pendente de apreciação na Câmara dos Deputados.
Qual é a importância do Tribunal Penal Internacional? Qual sua competência? Como se relaciona com os tribunais locais? De que modo poderá contribuir para a proteção dos direitos humanos e para o combate à impunidade dos mais graves crimes internacionais?
Desde 1948, a Convenção sobre a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, ao afirmar que o genocídio era um crime contra a ordem internacional, estabelecia que o mesmo deveria ser julgado pelos tribunais do Estado em cujo território foi o ato cometido ou por uma corte penal internacional. O raciocínio era simples: a gravidade do crime de genocídio poderia implicar o colapso das próprias instituições nacionais, que, assim, não teriam condições para julgar seus perpetradores. Por isso, há mais de 50 anos já se antevia a necessidade de criação de um Tribunal Penal Internacional, cabendo menção ao legado das experiências dos tribunais "ad hoc" (temporários) de Nuremberg, Tóquio, Bósnia e Ruanda.
Em 17 julho de 1998, em Roma, foi aprovado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, por 120 votos favoráveis, 21 abstenções e sete votos contrários (EUA, China, Israel, Filipinas, Índia, Sri Lanka e Turquia).
A competência do tribunal atém-se ao julgamento dos mais graves crimes internacionais, compreendendo o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os de agressão. A jurisdição do tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno.
O estatuto consagra ainda o princípio da cooperação, pelo qual os Estados-partes devem cooperar totalmente com o tribunal na investigação e no processamento de crimes que estejam sob a jurisdição deste. Dessa forma, o estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementaridade.


O Tribunal Penal Internacional é capaz de reduzir o "darwinismo" no campo das relações internacionais


O Estatuto de Roma aplica-se igualmente a todas as pessoas, sem distinção nenhuma baseada em cargo oficial. Ou seja, o cargo oficial de uma pessoa, seja ela chefe de Estado ou de governo, não eximirá sua responsabilidade penal nem importará em redução de pena; o que é um grande avanço do estatuto com relação ao regime das imunidades.
No contexto posterior a 11 de setembro, com a gravíssima crise do Oriente Médio, o combate ao terrorismo converte-se na preocupação central da agenda internacional, vocacionada à garantia da segurança máxima, na atuação do chamado "Estado-polícia". O maior desafio contemporâneo, como afirma o professor Paulo Sérgio Pinheiro, é evitar a Neo-Guerra Fria, que tende a conduzir ao perigoso "retorno às polaridades, definidas pelas noções de terrorismo e pelos métodos para combatê-lo" (Folha, pág. A3, 31/3/02).
O risco é que a luta contra o terror comprometa o aparato civilizatório de direitos, liberdades e garantias, sob o clamor de segurança máxima.
Contra o risco do terrorismo de Estado e do enfrentamento do terror, com instrumentos do próprio terror, só resta uma via -a via construtiva de consolidação dos delineamentos de um "Estado de Direito" no plano internacional. Para este Estado, é essencial o primado da legalidade e uma Justiça preestabelecida, permanente e independente, capaz de assegurar direitos e combater a impunidade, especialmente a dos mais graves crimes internacionais.
O Tribunal Penal Internacional é capaz de reduzir o "darwinismo" no campo das relações internacionais, em que Estados fortes, com elevado poder discricionário, atuam como bem querem em face de Estados fracos -basta mencionar a oposição dos EUA à criação do tribunal, temendo que americanos sejam processados por crimes de guerra, quando do uso arbitrário da força em território de Estado-parte do estatuto.
O tribunal também limita o grau de seletividade política no caso da responsabilização criminal em violações de direitos humanos. Basta acenar que a criação de recentes tribunais "ad hoc" basearam-se em resoluções do Conselho de Segurança, para as quais é necessário o consenso dos cinco membros permanentes, com poder de veto. Ao adotar o princípio da universalidade, o estatuto aplica-se a todos os Estados-partes, que são iguais no Tribunal Penal.
O Tribunal Penal Internacional celebra, sobretudo, a esperança de que a força do direito possa prevalecer em detrimento do direito da força.


Flavia Piovesan, 33, professora doutora em direito do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, é procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa da Pessoa Humana e da Comissão Justiça e Paz.



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