São Paulo, sexta-feira, 02 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Envelhecer dói

USHITARO KAMIA

Qual o valor da experiência de vida? No Brasil, quase nada. Envelhecer no nosso país é quase um pecado mortal

QUAL O valor da experiência de vida? No Brasil, quase nada.
Envelhecer no nosso país é quase um pecado mortal. É uma condenação em vários sentidos. Ser idoso por aqui é "ganhar" da medicina a capacidade de se manter vivo por mais tempo e perder para a tecnologia o direito ao respeito e ao sentimento de continuidade.
Vivemos num tempo em que os conceitos de objetividade estão supervalorizados em detrimento da sabedoria subjetiva. Só tem valor o conhecimento cartesiano (penso, logo existo) e que possa ser transformado em dinheiro imediato. Experiência de vida vale muito pouco na hora de disputar uma vaga de emprego.
Aliás, as pessoas mais velhas só têm valor para agências de turismo que criam roteiros para aumentar seus lucros. Os aposentados, então, são muito interessantes... para as instituições financeiras interessadas nos juros e lucros certos obtidos com os empréstimos para esse segmento.
Passar dos 50 significa uma ameaça para os planos de saúde ávidos por dinheiro fácil. Encontro de gerações é ficção científica atualmente. Foi-se o tempo em que o respeito aos mais velhos era pré-requisito em qualquer família e condição básica na ética da convivência.
A qualidade de vida não está resumida ao sentir-se bem fisicamente. É preciso dignidade. E isso a tecnologia e a máquina de consumo não nos oferecem.
Para começar, a família é uma instituição em via de extinção nas médias e grandes cidades. Compromissos familiares, então, nem se fala. Vive-se a transitoriedade plena. A cada dia, o conceito de continuidade é cada vez mais esquecido.
É preciso questionar este mundo transitório pelo qual somos empurrados. Enquanto a transitoriedade valoriza o presente e a circunstância, a continuidade dá mais ênfase à ligação das partes -jovem e idosa, masculina e feminina-, de modo a constituir um conjunto vivo, com objetivo comum no qual a energia dos laços e afetos de família é dada e partilhada.
As novas gerações vivem intensamente o presente como se não houvesse futuro e passado. Nossa sociedade desvaloriza o passado.
Numa sociedade dominada pela sedução do presente, os idosos estão destinados a parecer gradualmente menos importantes.
O domínio da tecnologia na sociedade atual faz com que sejamos levados a respeitar a opinião de um computador em detrimento da opinião de uma pessoa. Os mais velhos são tratados como ultrapassados pelas famílias. Tornam-se, então, um estorvo na dinâmica impessoal das relações humanas.
O sucesso materialista de uma sociedade pode, certamente, transformar-se no palco para o seu eventual fracasso. Pensar apenas no presente faz do efêmero uma seita.
Na Antigüidade, os gregos já haviam chegado à conclusão de que, paradoxalmente, somos mais vulneráveis quando nos sentimos fortes. Na atualidade, tudo o que não é imediato e objetivo perde totalmente seu valor.
A ética do materialismo se infiltra na vida das pessoas, de modo tal que rompe o tecido de valores da sociedade. O egoísmo do atual modelo social desintegra a família tradicional e os laços de lealdade e amor que unem seus membros.
Em qualquer época, os idosos são a personificação biológica do tempo passado. Na medida em que o passado é desvalorizado, também os idosos serão desvalorizados e considerados socialmente descartáveis.
Dentro desse quadro, os mais velhos, sentindo-se ultrapassados, acabam perdendo o respeito por si próprios e, num gesto socialmente estimulado pela propaganda, passam a imitar cada vez mais os jovens. A conseqüência disso é que a família terá perdido um de seus bens mais valiosos, o sentimento de continuidade.
A velocidade dos acontecimentos neste século 21 afasta qualquer ilusão de renascer uma família tradicional.
É necessário criar novas tradições familiares. O amor e o respeito são as únicas forças capazes de restituir a integridade de uma família e de uma sociedade.
É preciso estar atento para o fato de que transmitir princípios de conduta de uma geração para a seguinte requer empenho e um esforço determinado. A mera reprodução física da raça humana não garante a sobrevivência dos ideais da sociedade.


USHITARO KAMIA, advogado, é vereador de São Paulo (DEM) e ex-deputado federal.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Rodrigo Maia: O Lula dos ventos e a tempestade dos juros

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.