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São Paulo, segunda-feira, 02 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O tempo de acordar

JOSÉ CECHIN

Os tempos de acordar são diferentes -alguns acordam tarde, teria dito o presidente Lula. Vamos saudar o despertar e apoiar os esforços de mudança. O governo FHC despertou cedo. Entendeu o desequilíbrio da Previdência, de proporções significativas, aceleradamente crescente, que impunha restrições às finanças públicas, aumentando o endividamento e os juros e inibindo o desenvolvimento. Coube-lhe apresentar proposta abrangente, para o setor público e o privado, que aumentasse seu conteúdo de justiça social e sua viabilidade. Mudanças importantes, mas aquém do necessário, foram aprovadas em 98. Estão produzindo efeitos.
À época, muitos passaram a defender que só o regime do servidor público precisava de reforma, porque seu desequilíbrio era enorme e pagava aposentadorias de alto valor. Afinal, o INSS era superavitário até 1995. O INSS precisava, como ainda precisa, de reformas. O déficit, recém-nascido, era pequeno, mas se agigantava rápido. No setor público era muito maior, mas seu crescimento, mais lento, sempre esteve presente. Entre 1995 e 2002, o déficit do INSS cresceu 4.250%; no serviço público, 181%. Talvez tivesse sido mais fácil aprovar mudanças em separado. Ao enfrentar reformas nos dois regimes, foram convocadas todas as resistências juntas, e a aprovada foi modesta.
O governo Lula, sabiamente, propõe reformar apenas o regime dos servidores. Movem-no, a julgar pelas propostas, a questão pragmática e prioritária de melhorar as finanças federais e o entendimento, simplista, de que não é justo o governo pagar aposentadorias de alto valor. Com a escolha, reduzem-se os opositores e resta um discurso positivo de que só se muda o regime que paga altos proventos.
Note-se, porém, que privilégio não é receber altos proventos, mas benefício, de qualquer valor, sem mérito.
Esperando melhorar a aceitação popular, propõe aumentar o teto do INSS criando uma expectativa ilusória de aposentadorias maiores. O teto maior, de imediato, só aumenta a contribuição dos trabalhadores, refletindo a prioridade fiscal de gerar receitas.
Na mesma linha, a cobrança de inativos melhora mais para a União do que para os Estados, que já cobram sem isenção. Continua importante para estes, desde que o teto de isenção não seja alto, para evitar perdas com decisões judiciais. A cobrança de inativos e o aumento do teto do INSS são as únicas medidas com impacto fiscal imediato.
A essência da reforma, a que gera economias pequenas no início, mas crescentes no longo prazo, está na instituição da idade mínima e na nova fórmula do valor da aposentadoria e da pensão. A idade mínima, aplicável imediatamente; a nova fórmula, baseada nos salários de contribuição a qualquer regime, a depender de lei. A idade mínima, que discrimina quem começa a trabalhar jovem, atrasará essas aposentadorias, e a nova fórmula reduzirá drasticamente seu valor. Essa a origem da economia. A lei que definir a nova fórmula pode sanar a discriminação, desde que pondere a média salarial por tempo de contribuição e idade. Uma regra dessas dispensaria idades mínimas, tetos, vedação de proventos superiores à remuneração -aliás, permitidos no INSS.


Teria sido mais prudente e humana uma proposta que respeitasse "direitos acumulados" até a data da promulgação


Não é mudança cosmética nem completa. Corta profundamente as expectativas do servidor. Afeta mais aqueles já em final de vida de trabalho. Teria sido mais prudente e humana uma proposta que respeitasse "direitos acumulados" até a data da promulgação, alterando apenas a taxa de acúmulo daí em diante, como era o discurso da campanha.
As mudanças invertem o desbalanço entre regimes público e privado. Até 1998, o serviço público atraía profissionais com longo tempo de INSS para trocarem uma aposentadoria com teto por outra de alto valor, do governo. A proposta empurra o pêndulo para o lado oposto. Como as futuras aposentadorias dos dois regimes terão valores semelhantes, servidores serão estimulados a deixar o serviço público para se aposentarem mais cedo pelo INSS, sem redutor. Será esse mais um caso de falha do despertador, com o governo esposando, tardiamente, a tese do consenso de Washington, de Estado mínimo?
A elevação do teto do INSS só tem um óbvio argumento a favor: a receita imediata que produz. Os trabalhadores pagam mais, os empregadores não; os aposentados nada ganham; os que se aposentarem só alcançarão o novo teto após 24 (mulheres) ou 28 (homens) anos de contribuição aumentada.
O desequilíbrio do INSS aumenta, pois majora benefícios aumentando somente um terço do financiamento, a parte do trabalhador. Está na direção oposta à do ajuste. A promessa de benefício maior é ilusória, pois o trabalhador que pagar sobre o novo teto vai encontrar as finanças mais deterioradas quando chegar sua vez de se aposentar. Têm razão os críticos que apontarem omissões inexplicáveis e a falta de ousadia para propor outras mudanças urgentes.
Mas as propostas, mesmo que voluntaristas e sem um princípio unificador maior do que o efeito financeiro, o que torna sua sustentação mais frágil, estão na direção correta. A falta desse princípio e a omissão de questões urgentes não são motivo para negar importância à proposta, que precisa ser ajustada.
Compreende-se a dificuldade dos que pagaram caro na eleição pelo voto às mudanças de se desprender do humano, mas menor, sentimento de desforra e de continuar a apoiá-las, para o bem do país. Mas o interesse público que moveu os que acordaram cedo deverá animá-los a apoiar as reformas.


José Cechin, 52, é doutor em economia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). Foi ministro da Previdência (governo FHC).


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