São Paulo, sábado, 02 de junho de 2007

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FERNANDO GABEIRA

A invasão dos bárbaros

NOSSA CITADELA está sitiada. Os caciques decidiram pela resistência. Soldados que os assessoram passam nervosos pelos corredores. O sinal dos bárbaros não está apenas no horizonte. Há batalhões de microfones, esquadrilhas de câmeras, ultrapassando nossa linha de defesa.
Os bárbaros chegam também pela infovia. Pedem uma solução japonesa, nosso suicídio, uma solução européia, nosso afastamento, mas pedem sempre algo que não podemos dar.
A grande batalha se avizinha. Eles se agarram ao nosso pé como matilhas. O primeiro passo é liquidar os quintas-colunas, os que nos traem diante das câmeras. O que querem, senão aparecer? Por que não carbonizar, de vez, essas mariposas, na própria luz em que gravitam? Escândalo, impunidade, impunidade, escândalo. Nada mais estável, permanente. Não conseguem perceber a felicidade de um mundo que não muda jamais? Não se assumiu em vão o nome de Gautama.
Antropofagicamente, adotamos o budismo e invertemos sua lógica de que tudo muda. Acreditem na reencarnação e na imobilidade do que existe.
Não usaremos armas de destruição em massa. Aqui e ali, algumas pessoas deixam de ter suas casas populares, submergem na escuridão, ressecam com a falta de água em falsas adutoras. Qual o peso desse sofrimento diante dos que tiveram seus nomes jogados às feras?
Conseguir que esqueçam é o bastante. Como diz o poeta, amanhã é domingo, segunda-feira ninguém sabe o que será. Há futebol, televisão, deviam se ligar nisso, deixar de lado nossas vidas, bisbilhotadas em minúcias, filmadas em seqüências precisas, ouvidas nas mínimas interjeições.
Os bárbaros estão chegando. Não queremos liquidar os bárbaros, deixar milhares de corpos apodrecer no campo de batalha. É preciso que retrocedam para os botequins, esquinas, que apenas sussurrem o fel, ao invés da reprodução maciça, horror da modernidade.
Que pelo menos se lembrem, os bárbaros, lendo nos prédios e logradouros, nossos nomes, o nome de família, o nome do pai, amém. Dessa citadela, velamos pelo Brasil, com cheiro de café frio nas xícaras e o ar condicionado reinjetando a sujeira na atmosfera subterrânea.
Nem sempre os bárbaros invadem. Mas, no horizonte, os sinais são de guerra. Que os pombos façam cocô em nossas estátuas, mas os abutres passem ao largo. Resistiremos aos bárbaros e seu exército de câmeras, microfones, cartas de leitores, o diabo a quatro. Resistiremos, pelo menos sonhando em ser uma peça de nostalgia, nesse país que nos escapa.


assessoria@gabeira.com.br

FERNANDO GABEIRA
escreve aos sábados nesta coluna.


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