São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Obviedades

MICHEL TEMER

Depois de muito tempo vejo alguém -o ministro Jaques Wagner (Relações Institucionais)- se manifestar, em nome do governo, sem soberba e arrogância. O artigo "Diálogo a favor do Brasil" ("Tendências/Debates", 31/7/05) é um convite ao bom senso. Não fala em golpe, em elite, em separação de classes. Não despreza a lei nem as instituições. Destaca, acertadamente, obviedades.
É curioso notar como é importante ressaltar obviedades históricas e atuais. Por isso, permito-me, preliminarmente, lembrar alguns caminhos que trilhamos. Quem sabe essa recordação não é uma luz para encontrarmos a solução para a atual crise?
A primeira questão óbvia: há um caminho jurídico-institucional para os impasses. Nem precisaria dizer, mas, como trato de singelezas, recordo que o direito somente existe para que o povo de um Estado nacional saiba quais as "regras do jogo" na convivência social.
O direito organiza a sociedade. Imperativamente, coativamente, coercitivamente. Por isso, ninguém está acima da lei. Tanto o cidadão comum que se sujeita a um despejo se não pagar o aluguel como um parlamentar, um prefeito, um governador ou um presidente da República se violarem a ética ou atentarem contra a Constituição. Essa dicção é a mais forte revelação de que o poder, no país, é do povo, e não de um ou de alguns governantes. Não foi fácil chegarmos até aí.
Os povos sangraram para alcançar direitos como direito à vida, à livre locomoção, à intimidade, à participação. A luta contra o absolutismo e a construção do Estado democrático foram postulações vencedoras ao longo da história. Imaginem que para o súdito inglês poder se dirigir ao rei instituiu-se lei para acolher as petições. Para caminhar livremente, sem detenção indiscriminada, impôs-se o Habeas Corpus Act.
Com o Estado de Direito, o cidadão passou a dispor de instrumentos de defesa contra atitudes ditatoriais do governante e para proteger o próprio Estado do gesto de violação da lei daquele que governa. Essas são verdades (portanto, obviedades) universais.


A proposta do ministro deve ser aceita como gesto de boa vontade. O PMDB que não ocupa cargos está disposto a esse diálogo

Agora, obviedades históricas nacionais, cuja leitura se faz oportuna para avaliar se os sistemas jurídicos também podem ser democráticos ou ditatoriais. A Constituição de 1891 inspirava-se na norte-americana de 1787, com forte significação democrática. Perdurou até 1930, quando várias convulsões sociais levaram às Constituições de 1934 e 1937, esta última com afirmação ditatorial. Assim foi até 1945, sobrevindo a Carta de 1946, acolhedora dos direitos individuais. Durou até 1964, quando se instalou o governo autoritário, passando pela Constituição de 67/69, que vigorou até 82/83, início do movimento pela reconstitucionalização, de que resultou a Carta Magna de 1988, que fixou critérios de participação e de saliência dos direitos humanos.
Portanto, o Brasil viveu, desde 1891, períodos democráticos e autoritários. Mas, em todos eles, as premissas da responsabilização política não foram ignoradas. Pelo menos no papel. Na prática, contudo, muitos direitos eram agredidos e nem sempre a institucionalização política ocorreu como deveria.
Com a revolução inesperada da informação, a sociedade passou a conhecer os fatos em tempo real e, graças a esse processo, conseguimos romper o ciclo vicioso e periódico de ditadura e democracia. Com uma Constituição democrática de apenas 17 anos de idade, ninguém imagina que o país resvale para o retrocesso ditatorial.
Dito isso, distingo a oportunidade do pensamento do ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais. Primeiro, pelo reconhecimento de que o espírito democrático deve guiar o processo em curso. E com plena transparência. Tudo deve ser rigorosamente apurado.
Jaques Wagner sugere amplo relacionamento com o Congresso. Mas o governo, ressalto, deve dar um basta ao abuso de medidas provisórias. O Parlamento não deve ficar refém do Executivo. Sugere ainda debate e votação das reformas tributária e política. Para tanto, urge que o governo tenha efetivo interesse em aprofundar a pauta da reforma tributária, contendo a sanha de arrecadação de tributos e impostos. O setor produtivo carece de estímulos. E reforma política, nesse momento, pode ensejar decisões casuísticas, ressalvando-se questões pontuais e de consenso, como fidelidade partidária.
A proposta do ministro deve ser aceita por todos os partidos como um gesto de boa vontade do governo para abrir um novo tempo. Um tempo de relações mais respeitosas e institucionais com os partidos, de clarificação de intenções, de espírito desarmado. Um tempo de menos espalhafato e mais discrição nas investigações a cabo das autoridades policiais, como as que se vêem por ocasião da invasão de escritórios de advocacia e prisão de empresários. E, por fim, nada de acertos espúrios que venham a isentar de responsabilidade qualquer autoridade do Legislativo ou do Executivo.
O PMDB que não ocupa cargos no governo está disposto a esse diálogo.

Michel Temer, 64, advogado, professor de direito constitucional da PUC-SP e deputado federal, é o presidente nacional do PMDB. Foi presidente da Câmara dos Deputados e secretário da Segurança Pública (governos Montoro e Fleury) e de Governo do Estado de São Paulo (gestão Fleury).

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