São Paulo, sexta-feira, 02 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lavagem de gente

CLAUDIO WEBER ABRAMO

A necessidade de uma reforma política tem sido apontada há anos por muitos observadores. O sistema político-eleitoral brasileiro inclui distorções que afetam gravemente a representação democrática. As camadas populares são sub-representadas e as oligarquias são super-representadas. Esse é o problema central. Qualquer debate que se trave em torno do assunto precisa centrar-se nesse tema e apenas subsidiariamente em outros. Debate de reforma política que não aborde o problema da representação não é debate de reforma política.


Alterar regras às vésperas das eleições é golpe, e por isso a Constituição prevê o prazo de um ano para a realização de mudanças


Assim, por mais que o escândalo Correios/"mensalão" traga à baila as implicações políticas da corrupção, esse "gancho" não é o mais apropriado para discutir o assunto da reforma política. Por se basear em premissas falsas, o barulho que se produz neste momento carrega um vício de origem insanável.
Na verdade, o debate que alguns propõem tem como pano de fundo conveniências localizadas em certos partidos e pessoas, obedece a alianças estratégicas históricas e tem a função estratégica de desviar a atenção das causas da corrupção. Afirma-se que os crimes exibidos teriam origem no sistema eleitoral, em particular no mecanismo de financiamento de campanhas, e, de forma a eximir responsabilidades, declara-se que "todo mundo faz".
A vingar o que se prenuncia, a prática de crimes de corrupção e os mecanismos que os propiciam serão jogados para debaixo do tapete e tudo será debitado na conta do modelo de financiamento eleitoral. Com isso, será inaugurado um mecanismo novo -a lavagem de gente. Do mesmo modo que publicitários venais, funcionários partidários inescrupulosos, políticos desonestos, doleiros e bancos cúmplices lavam dinheiro, diferentes forças políticas, em acordo com áreas que tradicionalmente lhes dão apoio na sociedade, constroem uma lavanderia de reputações. Havendo sucesso na empreitada, o sujeito que saiu emporcalhado do valerioduto sairá limpinho do outro lado do pseudodebate da reforma política.
Uma das iniciativas nessa direção advoga a adoção de uma emenda constitucional que reduziria o prazo para alteração das regras eleitorais, que hoje é de um ano, para seis meses. A manobra se faria para permitir, entre outras coisas, a discussão da introdução do financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, "decidida" em debates públicos cuja orquestração é de se presumir. O problema, para esse grupo, é que, para valer em 2006, qualquer reforma político-eleitoral precisaria ser votada até o dia 30 de setembro, o que não tem nenhuma chance de ocorrer.
Como a via legal parece barrada pelas condições políticas, a turma inventou um golpe na Constituição. Corre um abaixo-assinado nessa direção, o qual, após ter sido discutido em assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, estaria sendo distribuído por bispos em suas dioceses. Só se pode recomendar ao eventual leitor que não assine tal despropósito. Alterar as regras eleitorais às vésperas das eleições é golpe, e é por isso que a Constituição define o prazo de um ano para a realização de mudanças.
Há outras formas de tornar mais rigoroso o controle do financiamento político e dos gastos de campanha. Comissão de representantes da sociedade civil montada no Tribunal Superior Eleitoral está fazendo exatamente isso. A propósito, não há maneira de impedir a formação de caixa dois.
A lavanderia de gente que se monta deixará sem respostas a questão mais importante que surge do escândalo, a saber, de onde a dinheirama saiu? O valerioduto não pode ter fabricado dinheiro. O financiamento em caixa dois de partidos e de políticos (não importa se para pagar campanhas ou para embolsar, não havendo nenhuma diferença entre uma coisa e outra) se dá como contrapartida de um e um só benefício: a obtenção de vantagens fraudulentas. É dinheiro vindo de corrupção prometida ou cumprida por meio do direcionamento de licitações públicas, da leniência na fiscalização de contratos, do perdão de dívidas e de multas previdenciárias e tributárias, da promulgação de legislações e de regulamentos que favorecem interesses econômicos, do desvio de finalidade em inversões públicas etc. Fingir que nada disso é relevante é trabalhar contra o interesse público.
Ao contrário do que querem nos impingir, não há possibilidade de empresas financiarem campanhas no caixa dois a não ser por motivos escusos. Nada disso pode ser atribuído ao modelo de financiamento eleitoral, que possibilita o financiamento legítimo em caixa um. Quem afirma o contrário não tem noção do que está dizendo.

Claudio Weber Abramo é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção (www.transparencia.org.br).


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