São Paulo, Terça-feira, 02 de Novembro de 1999
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TENDÊNCIAS/DEBATES

A ditadura do bom


NILTON BONDER
A ameaça que paira sobre o ser humano é tão grande para o "humano" como o é para o "ser". No entanto, dedicamos maior atenção ao "ser", ameaçado por poluição, superpopulação e pobreza, do que ao "humano", ameaçado pela indiferença e pelo desejo de controle e previsibilidade.
Um dos pilares da ética e do humanismo no Ocidente é a frase bíblica "ama teu próximo como a ti mesmo". Central para o monoteísmo ético-judaico e fundadora para o cristianismo, destacada por Jesus e Akiba e traduzida popularmente por Hilel como "não faça aos outros o que não queres que façam a ti", essa frase é a origem do direito e das conquistas de cidadania que se consagraram no Ocidente.
Há um aspecto dessa frase, entretanto, que me parece particularmente importante diante dos desafios de nossos tempos. Trata-se da possibilidade de ler, no hebraico original, em vez de "próximo", uma outra palavra de grafia idêntica e cujo significado é "ruim". A frase se leria então: "Ama o teu ruim como a ti mesmo".

Num mundo só bom não há espaço para o humano. Entender isso é o desafio de nossa civilização
Aprender a amar o que há de "ruim" em nós como parte de nós mesmos não é uma apologia à complacência, à resignação ou à imperfeição. Perceber que a palavra "outro" (próximo) tem a mesma raiz que a palavra "ruim" é entender um pouco de nossa psique. O que é diferente é automaticamente visto como "ruim". Verdadeiramente amar o "outro" é tão difícil e violento como se propuséssemos amar o "ruim" ou o imperfeito. No século 20 se conheceu bem essa equação, na qual o "outro" é igual ao "ruim". O nazismo foi cirúrgico ao se ver ameaçado tanto pelo "outro" cultural -judeus e ciganos- como pelo "outro" físico -gays e portadores de deficiência. Erradicá-los significava iniciar uma nova era mais estética, em que não teríamos que amar o "outro". Sem o "outro" -sem o "ruim"-, o mundo seria melhor, mais ético e menos violento.
Mas essa é a mais ignorante das ideologias -a ideologia da dominação. Ignora a natureza não só do ser humano, mas da própria vida. A vida carrega em si a mutação, a transformação de igual em diferente. A vida é em si diversa, enquanto a morte é homogênea.
A mais recente versão dessa crença se expressa hoje no desenvolvimento de tecnologias de prevenção e controle do mal. O milênio da genética e do chip está propondo um novo ser humano, no qual a seleção não natural venha a determinar os seres vivos do futuro.
O problema não é a erradicação dos males ou dos sofrimentos humanos, mas a do próprio mal. O problema é o oculto desejo humano de se livrar do "outro", que identifica sempre como "ruim". A criação de uma ética para as novas conquistas genéticas que nos garanta "amar o nosso ruim como a nós mesmos" é prioritária no terceiro milênio. Imaginemos o que teria acontecido se nossos ancestrais primatas dispusessem da tecnologia para evitar o diferente e o "outro". Imaginemos se pudessem ter evitado o Homo sapiens como produto de algo que fosse identificado na época como um rompimento de padrões e um possível convite ao "mal".
O mundo da excelência e da competição tem que resgatar seu amor ao diferente, ao exótico, ao feito à mão, ao individualizado, ao não-perfeito, à surpresa, ao descontrole e ao imprevisível. Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é "outro", o que está fora de padrão e de expectativas?
Não há identidade sem o outro; não há bom sem o ruim; não há bem sem o mal. Essa é a maneira como o ser humano enxerga a tensão da vida. Qualquer tentativa de engenharia que vise extirpar o "outro-ruim" corre o risco de inventar um "bom" monstruoso, que seja desagradável, horrendo e destrutivo. Com certeza o verbo dessa nova frase fundadora do futuro não seria mais o mesmo. Afinal amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente. Só poderemos integrar nosso "ruim" a nós se pudermos processá-lo por meio do sentimento de amor.
Num mundo só bom não há espaço para o humano. Entender isso é o grande desafio de nossa civilização. Mas sem dúvida implica coisas muito difíceis, tais como amar ou acolher nosso "ruim". Em nossa fraqueza está nossa grandeza. É isso que chamamos de consciência humana -uma "terceira via" entre a ingenuidade animal e a ignorância da dominação.


Nilton Bonder, 41, engenheiro mecânico pela Universidade de Columbia (EUA) e doutor em literatura hebraica pelo Jewish Theological Seminary, é rabino da Congregação Judaica do Brasil.



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