São Paulo, Terça-feira, 02 de Novembro de 1999 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A ditadura do bom
Mas essa é a mais ignorante das ideologias -a ideologia da dominação. Ignora a natureza não só do ser humano, mas da própria vida. A vida carrega em si a mutação, a transformação de igual em diferente. A vida é em si diversa, enquanto a morte é homogênea. A mais recente versão dessa crença se expressa hoje no desenvolvimento de tecnologias de prevenção e controle do mal. O milênio da genética e do chip está propondo um novo ser humano, no qual a seleção não natural venha a determinar os seres vivos do futuro. O problema não é a erradicação dos males ou dos sofrimentos humanos, mas a do próprio mal. O problema é o oculto desejo humano de se livrar do "outro", que identifica sempre como "ruim". A criação de uma ética para as novas conquistas genéticas que nos garanta "amar o nosso ruim como a nós mesmos" é prioritária no terceiro milênio. Imaginemos o que teria acontecido se nossos ancestrais primatas dispusessem da tecnologia para evitar o diferente e o "outro". Imaginemos se pudessem ter evitado o Homo sapiens como produto de algo que fosse identificado na época como um rompimento de padrões e um possível convite ao "mal". O mundo da excelência e da competição tem que resgatar seu amor ao diferente, ao exótico, ao feito à mão, ao individualizado, ao não-perfeito, à surpresa, ao descontrole e ao imprevisível. Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é "outro", o que está fora de padrão e de expectativas? Não há identidade sem o outro; não há bom sem o ruim; não há bem sem o mal. Essa é a maneira como o ser humano enxerga a tensão da vida. Qualquer tentativa de engenharia que vise extirpar o "outro-ruim" corre o risco de inventar um "bom" monstruoso, que seja desagradável, horrendo e destrutivo. Com certeza o verbo dessa nova frase fundadora do futuro não seria mais o mesmo. Afinal amar é o sentimento capaz de apreciar o diferente. Só poderemos integrar nosso "ruim" a nós se pudermos processá-lo por meio do sentimento de amor. Num mundo só bom não há espaço para o humano. Entender isso é o grande desafio de nossa civilização. Mas sem dúvida implica coisas muito difíceis, tais como amar ou acolher nosso "ruim". Em nossa fraqueza está nossa grandeza. É isso que chamamos de consciência humana -uma "terceira via" entre a ingenuidade animal e a ignorância da dominação. Nilton Bonder, 41, engenheiro mecânico pela Universidade de Columbia (EUA) e doutor em literatura hebraica pelo Jewish Theological Seminary, é rabino da Congregação Judaica do Brasil. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Luiz Eduardo Melin: A teoria e a prática Índice |
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