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CARLOS HEITOR CONY
Finados e confinados
RIO DE JANEIRO - Não vou entrar na discussão, tola e antiga, para saber se
os mortos governam os vivos ou se os
vivos é que governam os mortos. Assunto meio macabro, que faz parte
da cultura humana, tanto da ocidental como da oriental.
Na Antiguidade, o culto aos mortos
era um dos pilares da civilização, como a do Egito e a dos caldeus; havia
uma sacralização da morte, imposta
pelo próprio estágio da civilização.
Hoje, com os recursos técnicos da eletrônica, do cinema, do vídeo, da internet e com a banalização da multimídia, podemos conviver com nossos
mortos numa promiscuidade que nada tem de sagrada ou esotérica. Pelo
contrário: é sentimental e pode ser
doce.
Outro dia, estava ceando na copa,
quando ouvi um "Trabalhadores do
Brasil" que me assustou. Era um documentário sobre Vargas na TV do
quarto da empregada. Aquele famoso sotaque gaúcho soou no mesmo
tom de antigamente. E sua imagem,
distorcida pelo tempo do preto-e-branco, já pode ser melhorada na linguagem digital.
Nos elevadores inteligentes, ainda
se ouve a voz de Elis Regina. Na capa
de um segundo caderno, em cores
berrantes, a foto de um grupo de escritores que tinham uma só coisa em
comum: estavam todos mortos, dormindo profundamente, como naquele poema de Manuel Bandeira, outro
morto que me governa.
Tarde da noite, uma noite de insônia e de calor, tento ler um relato sobre o terremoto de Lisboa, tantos
mortos, perco o interesse, ligo a TV,
vou mudando de canais, Clark Gable
e Marilyn Monroe num rancho do
Texas, Charles Boyer e Marlene Dietrich num deserto em technicolor,
Ayrton Senna mostrando seu novo
helicóptero e até Darcy Ribeiro proclamando que o Brasil do Aleijadinho e de Villa-Lobos é a nova Roma
de Cícero e de Marco Aurélio.
Bolas, são eles que estão vivos ou fui
eu que morri sem saber?
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