São Paulo, sábado, 02 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Finados e confinados

RIO DE JANEIRO - Não vou entrar na discussão, tola e antiga, para saber se os mortos governam os vivos ou se os vivos é que governam os mortos. Assunto meio macabro, que faz parte da cultura humana, tanto da ocidental como da oriental.
Na Antiguidade, o culto aos mortos era um dos pilares da civilização, como a do Egito e a dos caldeus; havia uma sacralização da morte, imposta pelo próprio estágio da civilização. Hoje, com os recursos técnicos da eletrônica, do cinema, do vídeo, da internet e com a banalização da multimídia, podemos conviver com nossos mortos numa promiscuidade que nada tem de sagrada ou esotérica. Pelo contrário: é sentimental e pode ser doce.
Outro dia, estava ceando na copa, quando ouvi um "Trabalhadores do Brasil" que me assustou. Era um documentário sobre Vargas na TV do quarto da empregada. Aquele famoso sotaque gaúcho soou no mesmo tom de antigamente. E sua imagem, distorcida pelo tempo do preto-e-branco, já pode ser melhorada na linguagem digital.
Nos elevadores inteligentes, ainda se ouve a voz de Elis Regina. Na capa de um segundo caderno, em cores berrantes, a foto de um grupo de escritores que tinham uma só coisa em comum: estavam todos mortos, dormindo profundamente, como naquele poema de Manuel Bandeira, outro morto que me governa.
Tarde da noite, uma noite de insônia e de calor, tento ler um relato sobre o terremoto de Lisboa, tantos mortos, perco o interesse, ligo a TV, vou mudando de canais, Clark Gable e Marilyn Monroe num rancho do Texas, Charles Boyer e Marlene Dietrich num deserto em technicolor, Ayrton Senna mostrando seu novo helicóptero e até Darcy Ribeiro proclamando que o Brasil do Aleijadinho e de Villa-Lobos é a nova Roma de Cícero e de Marco Aurélio.
Bolas, são eles que estão vivos ou fui eu que morri sem saber?


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