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CARLOS HEITOR CONY
Barril de cerveja
RIO DE JANEIRO - Ser ou não ser -não sou fanático pelo surrado monólogo do Hamlet nem pela própria
peça em si. Em matéria de Shakespeare, prefiro "Otelo", "Macbeth" e
"Júlio César". Mas sempre me intrigou aquela cena do cemitério, em
que o príncipe segura o crânio de Yorik, o bobo da corte que ele conhecera
em criança, e diz para Horácio:
"Alexander died, Alexander was
burned, Alexander returned into
dust, the dust is earth". Alexandre
morreu, Alexandre foi enterrado,
Alexandre tornou-se pó, o pó é terra.
E Hamlet conclui que da terra faz-se
a argila e com a argila se pode fazer a
tampa de um barril de cerveja.
Não se trata de simples paráfrase
do "memento homo", lembra-te, homem, que és pó e ao pó retornarás, a
frase que geralmente é colocada no
portal dos cemitérios.
Com o crânio de Yorik nas mãos,
Hamlet pensa num dos grandes da
história e descobre que, depois de certo tempo, Alexandre em nada se diferencia do bobo da corte.
Pedindo perdão pelo tema macabro, lembro que hoje é Dia de Finados -e aí está. Tanto Alexandre, o
Grande, como Yorik, o palhaço da
corte do rei da Dinamarca, todos ficaram nivelados no mesmo pó e deste pó, transformado em argila, pode-se tampar barris de cerveja.
Tenho a impressão de que o Dia de
Finados foi instituído para
honrarmos os mortos, rezarmos por
eles e deles sentir saudades. Seria essa a finalidade cristã desta data.
Uma finalidade nobre e sentimental,
da qual não sou exatamente devoto,
achando que devemos tirar outra lição de nosso destino biológico.
Vejo a data de outro modo. Uma
advertência que nos condena o orgulho e a vaidade. "Mas para que tanto
sofrimento se lá fora há o lento deslizar da noite?" -cito outro poeta.
Mais cedo ou mais tarde, os vivos de
hoje talvez nem sirvam para tampar
barris de cerveja.
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