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Filantropia e capitalismo global
GILBERTO DUPAS
Parece ser da cultura capitalista que o vencedor leve tudo e depois ajude um pouquinho a grande massa de perdedores
BILL GATES e Warren Buffet, os
dois homens mais ricos do
mundo, após doarem 70 bilhões
de dólares para a Fundação Gates, são
também os maiores filantropos vivos.
Símbolos do capitalismo global, eles
integram os 40 atuais bilionários
mundiais que acumularam sozinhos
sua fortuna.
A filantropia nasceu nos Estados
Unidos ao final do século 19 para remediar a incompetência das instituições em atender os excluídos daquele
tempo. Ideólogos como Andrew Carnegie e Herbert Spencer incentivavam os doadores a aplicar aos problemas sociais os métodos racionais da
revolução industrial. Aliás, foi Buffet
quem deu a Gates o famoso texto de
Carnegie, "O Evangelho da Riqueza",
sobre a "necessidade moral" da grande filantropia.
As "fundações" pretendiam ser
uma espécie de "burocracia da virtude cívica" ou "alternativa privada ao
socialismo", procurando amenizar
críticas às grandes fortunas como as
de John D. Rockfeller e Andrew Mellon. Algumas daquelas fundações, no
entanto, acabaram por criar autonomia e se profissionalizar, dando intensa colaboração à arte e à cultura.
Também ajudou o sentimento de
culpa dos milionários, tomados pelo
fervor religioso da "ética protestante"
de Max Weber; a percepção de que os
sucessores não mereciam aquelas fortunas e poderiam colocá-las a perder;
e os incentivos fiscais.
O dom da filantropia pode ser encarado como uma categoria do capital,
ligado ao seu próprio processo de reprodução, "legitimando" a imagem
dos capitalistas que, com competência e oportunismo, criaram intensos
processos de acumulação.
Theodore Roosevelt, durante a
campanha presidencial de 1912 -talvez irritado com algum doador recalcitrante-, investiu contra os novos
ricos, declarando que "algum grau de
caridade no gasto dessas fortunas"
não compensaria o tipo de condutas
que permitiu adquiri-las.
Joseph Schumpeter, numa frase lapidar, assim situou a filantropia: "O
homem cujo espírito está todo absorvido na luta pelo sucesso dos negócios
tem, como regra geral, muito pouca
energia para consagrar-se seriamente
a qualquer outra atividade. Para ele,
um pouco de filantropia e um pouco
de "colecionismo" fazem geralmente
parte do negócio".
A mais recente face da filantropia,
na sua versão soft de "responsabilidade social das empresas", se transformou numa espécie de "marketing defensivo-ofensivo" que tenta preencher o vácuo das políticas públicas e a
incompetência dos governos, que empurram para o âmbito privado a solução das desigualdades.
Afinal, os consumidores estão inquietos e muito sensíveis às questões
sociais e ambientais, tendendo a criar
maior lealdade a marcas que anunciam serem responsáveis por ações
sociais, não importa quão verdadeiras
ou consistentes essas ações sejam.
Assim, grandes empresas poluidoras têm contratado consultorias especializadas para maquiá-las, aos olhos
do consumidor, como "empresas verdes". Pequenas ações e apoios moderados a entidades adequadas, embalados em milhões de dólares de propaganda -valor, às vezes, bem maior
que o destinado às próprias ações sociais- podem agregar expressivo valor a uma marca.
Obviamente merece apoio e aplauso toda iniciativa tomada para combater a fome ou aumentar as chances
de retirar -ainda que provisoriamente- um ser humano da exclusão. Mas
a questão é avaliar se esse caminho é
estruturalmente consistente.
É natural que seja atribuída às corporações uma parcela crescente da
responsabilidade pelos efeitos negativos da globalização. Elas concentram
hoje um grande poder: apenas as sete
maiores empresas mundiais geram
um volume de negócios equivalente
ao PIB somado de México, Brasil e Argentina. E suas decisões sobre novas
tecnologias, para além de produtos
mais sofisticados e eventualmente
úteis, são uma das grandes causas de
redução de empregos, concentração
de renda e degradação ambiental.
Parece ser da cultura capitalista
que o vencedor leve tudo e depois ajude um pouquinho a grande massa de
perdedores. Numa visão antropológica, Marcel Mauss diz que o chefe tribal favorecido pelos espíritos e pela
fortuna reafirmava sua autoridade
distribuindo parte dela e colocando
os favorecidos "à sombra do seu nome". Mas não será por aí que o capitalismo global vai encontrar um caminho efetivo para reduzir a exclusão
social.
GILBERTO DUPAS, 63, economista, é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e autor de "O Mito do Progresso" (Unesp), entre outras obras.
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