São Paulo, quinta-feira, 02 de novembro de 2006

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Filantropia e capitalismo global

GILBERTO DUPAS

Parece ser da cultura capitalista que o vencedor leve tudo e depois ajude um pouquinho a grande massa de perdedores

BILL GATES e Warren Buffet, os dois homens mais ricos do mundo, após doarem 70 bilhões de dólares para a Fundação Gates, são também os maiores filantropos vivos. Símbolos do capitalismo global, eles integram os 40 atuais bilionários mundiais que acumularam sozinhos sua fortuna.
A filantropia nasceu nos Estados Unidos ao final do século 19 para remediar a incompetência das instituições em atender os excluídos daquele tempo. Ideólogos como Andrew Carnegie e Herbert Spencer incentivavam os doadores a aplicar aos problemas sociais os métodos racionais da revolução industrial. Aliás, foi Buffet quem deu a Gates o famoso texto de Carnegie, "O Evangelho da Riqueza", sobre a "necessidade moral" da grande filantropia.
As "fundações" pretendiam ser uma espécie de "burocracia da virtude cívica" ou "alternativa privada ao socialismo", procurando amenizar críticas às grandes fortunas como as de John D. Rockfeller e Andrew Mellon. Algumas daquelas fundações, no entanto, acabaram por criar autonomia e se profissionalizar, dando intensa colaboração à arte e à cultura.
Também ajudou o sentimento de culpa dos milionários, tomados pelo fervor religioso da "ética protestante" de Max Weber; a percepção de que os sucessores não mereciam aquelas fortunas e poderiam colocá-las a perder; e os incentivos fiscais.
O dom da filantropia pode ser encarado como uma categoria do capital, ligado ao seu próprio processo de reprodução, "legitimando" a imagem dos capitalistas que, com competência e oportunismo, criaram intensos processos de acumulação.
Theodore Roosevelt, durante a campanha presidencial de 1912 -talvez irritado com algum doador recalcitrante-, investiu contra os novos ricos, declarando que "algum grau de caridade no gasto dessas fortunas" não compensaria o tipo de condutas que permitiu adquiri-las.
Joseph Schumpeter, numa frase lapidar, assim situou a filantropia: "O homem cujo espírito está todo absorvido na luta pelo sucesso dos negócios tem, como regra geral, muito pouca energia para consagrar-se seriamente a qualquer outra atividade. Para ele, um pouco de filantropia e um pouco de "colecionismo" fazem geralmente parte do negócio".
A mais recente face da filantropia, na sua versão soft de "responsabilidade social das empresas", se transformou numa espécie de "marketing defensivo-ofensivo" que tenta preencher o vácuo das políticas públicas e a incompetência dos governos, que empurram para o âmbito privado a solução das desigualdades.
Afinal, os consumidores estão inquietos e muito sensíveis às questões sociais e ambientais, tendendo a criar maior lealdade a marcas que anunciam serem responsáveis por ações sociais, não importa quão verdadeiras ou consistentes essas ações sejam.
Assim, grandes empresas poluidoras têm contratado consultorias especializadas para maquiá-las, aos olhos do consumidor, como "empresas verdes". Pequenas ações e apoios moderados a entidades adequadas, embalados em milhões de dólares de propaganda -valor, às vezes, bem maior que o destinado às próprias ações sociais- podem agregar expressivo valor a uma marca.
Obviamente merece apoio e aplauso toda iniciativa tomada para combater a fome ou aumentar as chances de retirar -ainda que provisoriamente- um ser humano da exclusão. Mas a questão é avaliar se esse caminho é estruturalmente consistente.
É natural que seja atribuída às corporações uma parcela crescente da responsabilidade pelos efeitos negativos da globalização. Elas concentram hoje um grande poder: apenas as sete maiores empresas mundiais geram um volume de negócios equivalente ao PIB somado de México, Brasil e Argentina. E suas decisões sobre novas tecnologias, para além de produtos mais sofisticados e eventualmente úteis, são uma das grandes causas de redução de empregos, concentração de renda e degradação ambiental.
Parece ser da cultura capitalista que o vencedor leve tudo e depois ajude um pouquinho a grande massa de perdedores. Numa visão antropológica, Marcel Mauss diz que o chefe tribal favorecido pelos espíritos e pela fortuna reafirmava sua autoridade distribuindo parte dela e colocando os favorecidos "à sombra do seu nome". Mas não será por aí que o capitalismo global vai encontrar um caminho efetivo para reduzir a exclusão social.


GILBERTO DUPAS, 63, economista, é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e autor de "O Mito do Progresso" (Unesp), entre outras obras.

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