São Paulo, terça, 3 de fevereiro de 1998

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As coisas e os nomes


Num mundo de políticos triviais e venais, esses dois homens são gigantes de ideais e de convicções
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Pergunto-me por que me emocionei ao ver na televisão a chegada do papa a Havana e seu encontro com Fidel Castro. O que há nesses dois homens que tange em mim uma corda que mais nenhum líder mundial tange?
Tenho discordâncias profundas com ambos, e ambos representam para mim muito do passado e pouco do futuro. Apesar disso, despertam em mim sentimentos profundos de admiração.
Admiro neles a genuinidade das suas convicções e a força com que as defendem. Num mundo de políticos triviais e venais, sem lealdades que não possam sacrificar, sem compromissos que não possam assinar ou violar segundo as conveniências, em quem vícios privados se transformam em critério de virtudes públicas -ao mesmo tempo em que os vícios públicos se desculpam ou disfarçam com virtudes privadas-, esses dois homens são gigantes de ideais e de convicções, mesmo que os seus ideais não se agigantem perante nós e as suas convicções não nos movam.
O que há de comum entre eles é, por um lado, a crença na possibilidade de uma sociedade justa, em que se realizem harmônica e plenamente os valores da igualdade e da liberdade. Por outro, a trágica consciência de que, pelas vias que propõem, esse objetivo nunca será atingido.
Daí que, não entrando em compromissos, tenham de entrar em contradição. O papa e a doutrina social da igreja acabaram por sacrificar a igualdade à liberdade e por reduzir a sociedade justa à sociedade capitalista menos injusta, a social-democracia. Fidel acabou por sacrificar a liberdade à igualdade e por reduzir a sociedade justa à autoridade de a poder declarar como tal.
Cada um deles teve quem lhe chamasse a atenção para as contradições. A igreja teve na Teologia da Libertação a consciência de que sem igualdade não há liberdade, enquanto Fidel teve em Che Guevara a consciência de que só a revolução permanente da liberdade pode conduzir à igualdade.
A Teologia da Libertação está para o papa como Che está para Fidel. A primeira foi asfixiada; o segundo morreu e, como qualquer outro mártir, transformou-se em símbolo tanto daquilo em que acreditava como daquilo em que não acreditava.
A nossa tragédia está em que a consciência que temos das contradições desses dois homens é tão forte quanto a crença que eles nos transmitem no ideal de uma sociedade justa e na necessidade de lutar por ela.
Para sermos fiéis às suas causas, temos de recusar as consequências que eles retiram delas. Temos de lhes prestar homenagem pelo modo como nos levam a discordar deles. Isso significa que temos de reinventar o ideal da sociedade justa.
Esse ideal só pode ser o da democracia sem fim, o de uma sociedade cuja justiça se justifica exclusivamente pelo aprofundamento constante da democracia: na família, no trabalho, na comunidade, no espaço público, na escola, nas relações com a natureza, nas relações entre Estados e grupos sociais.
Uma tal sociedade é incompatível com o capitalismo tal como o conhecemos e, curiosamente, representa um ideal que nem o papa nem Fidel subscreveriam. Chamemos à sociedade da democracia sem fim socialismo ou sociedade da palavra. O importante não é o nome que pomos às coisas, mas antes as coisas que pomos nos nomes.
Boaventura de Sousa Santos, 57, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).



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