São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O monstro e o poeta

ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO

O ódio da elite a Lula é proporcional à insistência desse governo, moderado e disciplinado, em tentar abrir brechas nas bases sociais do bloco de poder. Nesse sentido, Lula é monstruoso, porque está aquém da representação e além da utopia. Ele não é, pois, homologável nem à soberania do "um" (seja ele o "povo", o "partido", "o" intelectual) nem a nenhuma utopia abstrata. Lula é, ao mesmo tempo, um e muitos. Sua singularidade se mantém e se reproduz na multiplicidade. Não se trata de projeto, mas de forma de vida.


Expressão do "liberalismo" das elites brasileiras, os subsídios públicos vão sempre para os mesmos, e o mercado, para os outros


É essa monstruosidade que incomoda a elite, também no que diz respeito às políticas culturais do Ministério da Cultura. O poeta Ferreira Gullar (em sabatina desta Folha, no dia 21/12/05) afirma que "não acompanha", mas que "dizem que os projetos [do MinC] não andam. Nem as solicitações de verbas". Ele sentencia: "O governo tem de dar respaldo para [a cultura]", e não intervir.
Não poderíamos encontrar expressão mais apropriada do "liberalismo" das elites brasileiras: os subsídios públicos (o Estado) devem sempre ir para os mesmos (os "grandes" cineastas, os "autores" confirmados), e o mercado (a competição e o risco), para os outros!
As críticas da elite ao MinC tentam aproveitar uma real ambigüidade sobre o que se entende por política cultural. Não é por acaso que, por uma ironia apenas superficial, o poeta e o secretário de Políticas Culturais do MinC trocaram acusações de stalinismo.
Na realidade, permanece cá e lá uma visão de esquerda que pensa a cultura como um instrumento necessário à construção, a partir de uma política de Estado, de um "projeto de nação". Evidentemente, esse discurso "oferece" à hipocrisia da elite a oportunidade retórica de defender a "liberdade" da criação. Ficamos assim com essa falsa oposição entre uma liberdade de criação, que deveria ser garantida por mecanismos não estatais, e uma publicidade da cultura, que passaria por algum mecanismo de "centralização" estatal.
Hoje, a cultura não tem só um expressivo peso econômico. A economia como um todo depende cada vez mais, em seu conjunto, das dimensões culturais. Algo que não saberia limitar-se aos sucessos de um ou outro grande "autor", por mais genial que ele seja. O que é cultural no capitalismo globalizado das redes é o trabalho em geral. Ou seja, um trabalho que se torna intelectual, criativo, comunicativo -em uma palavra, imaterial.
A cultura "gera valor" (como diz o "management") porque o que é incorporado aos produtos são formas de vida: estilos, preferências, status, subjetividades, informações, normas de consumo e até a produção de opinião pública. A mercadoria precisa ser dotada de valor cultural. O trabalho se torna, assim, ação cultural. O trabalho da cultura e na cultura se torna cada vez mais o paradigma da produção em seu conjunto.
Hoje em dia, vivemos um tempo unificado e disperso que implica também uma nova espacialidade, não funcional, de inter-relações contínuas. Toda a vida é mobilizada em um fluxo contínuo -de circulação produtiva- que pode ser chamado de biopolítico: produção de formas de vida por meio de outras formas de vida.
Nesse novo mundo, a multidão das singularidades que cooperam em rede define um campo totalmente diferente do individualismo da retórica liberal e neoliberal. As singularidades se definem pelas relações que as ligam entre elas, pelo reconhecimento do outro. O trabalho da multidão só pode acontecer na medida em que paixão, imaginação e intelecto se encontram no que podemos chamar de amor das singularidades que cooperam horizontalmente. O amor, entendido como nova ética do trabalho e como nova estética, produz o comum.
Não estamos idealizando. Muito pelo contrário, falamos de algo extremamente material, ou seja, tanto dos produtos de uma colaboração voluntária, aberta e auto-organizada, que caracteriza os movimentos do "copyleft" e do "open source", quanto dos pré-vestibulares "comunitários" para negros e pobres. O comum não é privado (mercado) nem público (estatal): sua constituição passa pelo reconhecimento de que não é mais possível uma produção e uma estética, a não ser na base de uma apropriação social dos bens públicos.
Corretamente, as políticas culturais do MinC estão além dessa oposição, na medida em que procuram se abrir aos sujeitos novos da criação cultural contemporânea. Esses sujeitos, múltiplos, não são mais representados pelo Estado, pois não podem ser reduzidos ao "um" (ao "povo" e/ou à "nação"), ao passo que sua multiplicidade não tem nada a ver com o individualismo egoísta do mercado.
A procura de mais democracia, diversidade e pluralidade das políticas de fomento à cultura por parte do MinC constitui uma inovação maior porque coloca a produção cultural no cerne da mobilização democrática e produtiva da sociedade como um todo.

Antonio Negri, 72, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael Hardt, os livros "Império" e "Multidão".
Giuseppe Cocco, 50, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".



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