São Paulo, segunda-feira, 03 de abril de 2006

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O ioiô da ilusão

RICARDO ARNT


À primeira vista, Jânio e Lula parecem antípodas, mas há dinâmicas comuns e similaridades surpreendentes

A moda é JK. Políticos e telespectadores sonham com um novo Juscelino, mas a hora convida a pensar em Jânio. Não com o Jânio terminal de 1986, do segundo mandato na prefeitura paulista -uma caricatura de si mesmo-, mas com o prefeito de 1953, o governador aliado a socialistas e trabalhistas de 1954 e o presidente de 1961. Uma comparação entre os governos de Jânio e o de Lula pode ofender seus admiradores. À primeira vista, os dois parecem antípodas, mas há dinâmicas comuns e similaridades surpreendentes.
Ambos sustentaram governos de centro-esquerda, ambíguos por constituição, nunca suficientemente à direita ou à esquerda para os críticos, e condenados a apanhar pelos dois lados. Jânio inaugurou a democracia pra valer no Brasil como primeiro presidente oposicionista a tomar posse, atraindo uma oposição tenaz e majoritária no Congresso e na imprensa. Lula furou a bolha do ressentimento ideológico que supunha que a esquerda nunca governaria o país por via democrática. E também pode dizer que nunca houve tanta democracia como agora.
Os dois encarnaram promessas salvacionistas de redenção abusando da demagogia e das bravatas que varreriam e mudariam "tudo o que está aí". Ambos prometeram a moralização dos costumes e produziram decepção e descrédito em doses cavalares, contribuindo para a desorientação da sociedade e a desagregação dos partidos. A renúncia de Jânio, em 1961, produziu dano maior do que a leniência e a dissimulação do PT com seus escândalos de corrupção, mas o trauma não imunizou o eleitorado.
Jânio elegeu-se presidente consagrado como propulsor do desenvolvimento e saneador das finanças de São Paulo numa época de irresponsabilidade populista crônica -que desabaria em três anos. Milton Campos dizia que Jânio "se elegia com os defeitos e governava com as qualidades". Foi o precursor da responsabilidade fiscal. Ampliou a infra-estrutura estadual de energia, estradas e saneamento e consolidou a industrialização paulista. Atraiu capitais estrangeiros, créditos e indústrias para o ABC. Criou empregos para milhares de nordestinos, alargou a cidadania e ampliou as liberdades democráticas. A seu modo, o janismo foi um pré-petismo. Em 1960, conquistou 55,1% dos votos nominais de São Paulo para a Presidência da República.
Lula assumiu a defesa da estabilidade da moeda conquistada pelo Plano Real, impôs o arrocho dos juros altos e conquistou superávits na balança comercial com mais convicção e conservadorismo do que o governo anterior. Apesar das limitações, conseguiu distribuir renda, melhorar a receita dos mais pobres e controlar a dívida externa. Mas as similitudes não eliminam as diferenças: Jânio enxugava a máquina pública, exigia eficiência e até perseguia o funcionalismo, enquanto Lula prestigia, contrata e expande as bases eleitorais.
Os dois presidentes empenharam-se em políticas externas independentes, recusando alinhamentos automáticos e buscando inovação e protagonismo, nem sempre bem-sucedidos, mas geradores de amplos benefícios retóricos. Em termos de eficácia, o atual esforço exportador não tem precedentes e não pode ser comparado aos resultados da distensão janista com os socialistas e o Terceiro Mundo. Jânio, entretanto, foi mais corajoso -e se deu mal.
Ambos chegaram ao governo sem um plano consistente, impávidos da sua magnificência histórica, prometendo o impossível de cumprir. Jânio fez carreira condenando os políticos e os partidos, arvorando-se como o mais idealista, o mais honesto e o único capaz de consertar o país. O PT foi mais longe, fundamentando-se em toda uma filosofia de desprezo e guerra aos partidos e à política burguesa, cujos desastres históricos ainda não foram purgados. Hoje, paga caro pela sua concepção instrumental de democracia.
Jânio exorbitava de voluntarismo e de incompreensão. Foi o pico culminante da cordilheira do narcisismo brasileiro, aquela formação rochosa de gênios salvadores, artistas inquestionáveis e jornalistas prepotentes na qual despontam os picos talentosos Gilberto Freyre, Assis Chateaubriand, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha, Caetano Veloso e Fernando Henrique Cardoso. Jânio foi o pico da Neblina. Ao desmoronar, consagrou-se pelo avesso, virando o epítome do político oportunista e fraudulento que tanto combatera. Lula é menos egocêntrico, mas a cada dia se torna um político mais profissional.
Em 1961, a esquerda rechaçou o projeto reformista de Jânio, embora muitos o apoiassem, até comunistas. Aqueles que hoje reclamam da suposta conversão neoliberal de Lula podem estar diante da virada: do espetáculo de desapontamento para o espetáculo do apoio popular. Progressos reais valem mais do que expectativas grandiosas. Não raro, a paixão política dissemina uma satisfação alucinatória cuja frustração costuma ser proporcional ao investimento. Em 1960 ou 2006, tudo que "está aí" continua aí mesmo. A questão não é não ter esperanças na política, mas que esperanças ter.

Ricardo Arnt, 53, jornalista e escritor, é autor de "Jânio Quadros: o Prometeu de Vila Maria" (Ediouro, 2004).


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