São Paulo, sexta, 3 de abril de 1998

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A "elitização" da universidade pública


Um número cada vez maior de estudantes supera condições socioeconômicas que são desfavoráveis
JOSÉ MARTINS FILHO

A ocupação das vagas no ensino superior público tem sido objeto de opiniões acaloradas, especialmente após a abertura da nova Lei de Diretrizes e Bases para a autorização de formas de acesso alternativas ao vestibular.
Artigo do reitor da USP, professor Jacques Marcovitch, publicado na Folha em 27 de fevereiro dá conta dos equívocos que permeiam frequentemente essas discussões. Parece oportuno tecer alguns comentários a respeito.
A crítica mais frequente é que, do jeito que está, a maioria das vagas na universidade pública acaba sendo ocupada por estudantes de origem econômica e cultural mais elevada.
Nesse contexto, em nome do anseio de justiça e de equidade social, surgem propostas as mais variadas, desde a extinção pura e simples da gratuidade do ensino superior público até a introdução de novas formas de acesso que consigam, pretensa e milagrosamente, superar as desvantagens competitivas e, ao mesmo tempo, manter o padrão de qualidade das universidades.
Qualquer proposta tem de se assentar em fatos. No caso de uma instituição como a Unicamp, que pratica um vestibular de alta seletividade e busca seus estudantes em todas as regiões do país, um primeiro dado a considerar é que, dos candidatos que se matriculam, 31% realizaram seus estudos secundários em escolas públicas.
É importante ressaltar também que, desses, parcelas significativas lograram obter vagas em cursos de alta demanda, como ciências biológicas (54%), engenharia química (55%) e engenharia elétrica (46%), entre outros. São percentuais que desautorizam, já de início, a tese da "universidade para ricos".
Basta avaliar, em paralelo, a renda familiar do universo de candidatos (cerca de 35 mil no último vestibular). Em torno de 20% são estudantes que provêm de famílias com rendimento mensal inferior a dez salários mínimos. No outro extremo, o dos que têm renda familiar acima de 30 mínimos, registra-se um percentual de 21% entre os alunos que optaram por cursos noturnos; entre os optantes por cursos diurnos essa parcela alcança, efetivamente, 33%.
Note-se, porém, a extensão muito mais ampla das faixas intermediárias de rendimento, que correspondem exatamente às camadas da classe média que vieram empobrecendo nos últimos tempos, dificilmente podendo ser colocadas na categoria dos ricos.
A heterogeneidade das representações sociais é, aliás, confirmada pela análise das ocupações profissionais dos pais dos ingressantes, agrupadas em sete categorias, conforme a "escala de hierarquia de prestígio por profissões" de Bertran Hutchinson.
Apenas 1,7% dos alunos se enquadram na categoria mais elevada, em que se incluem ocupações de maior prestígio social, como altos cargos políticos ou administrativos, proprietários de grandes empresas e assemelhados.
Nas categorias de menor prestígio, que incluem trabalhadores de um modo geral, concentram-se 26% dos estudantes da Unicamp, proporção que sobe para 40% quando considerados apenas os cursos noturnos. Os demais se incluem nas categorias intermediárias (profissionais liberais, proprietários de pequenas empresas etc.), o que explica o mapa da situação ocupacional dos próprios estudantes, no qual se verifica que, hoje, não menos de 30% dos matriculados são trabalhadores.
Não há dúvida de que o perfil econômico desses estudantes é superior à média da população brasileira. Porém uma menor distância será observada se a comparação for feita com a população apta a pleitear uma vaga na universidade -isto é, o conjunto dos alunos que concluem o ensino médio.
É que, para atingir a situação de concluinte do ensino médio, uma longa trajetória já teve de ser trilhada. Basta dizer que, dos 10 milhões de jovens brasileiros com idade entre 14 e 17 anos, apenas 24% estão matriculados no ensino médio. Em outras palavras, nessa altura já houve um "vestibular" de "relação candidato-vaga" com filtro próximo de quatro para um.
Esse último dado livra de toda culpa a seletividade imposta pela universidade pública (verdadeiramente seletivo é, no caso, todo o sistema anterior) e mostra a falácia do argumento de que o ensino superior público é elitista.
Mais: demonstra que, apesar desse fator, um número cada vez mais expressivo de estudantes logra superar suas condições socioeconômicas desfavoráveis e se graduar com brilhantismo acadêmico. Esse número será progressivamente mais alto na medida em que for maior o número de vestibulandos oriundos da escola pública secundária.

José Martins Filho, 53, é reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).



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