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OTAVIO FRIAS FILHO
Império, enfim
Com a nomeação do governo provisório encarregado de dirigir o
Iraque até as eleições previstas para janeiro de 2005, começou a transição
que deverá restituir a soberania ao poder local. Ela começa de modo suspeito, pois a cúpula do novo governo é
vista como fantoche dos Estados Unidos, e imprevisível: não se sabe se o
novo governo escapará ao controle
americano, se será suplantado pela
oposição religiosa, se governará.
Qualquer cenário parece possível
num ambiente tão instável, cujo pano
de fundo é uma insurreição armada
contra o ocupante estrangeiro. Sem
contar os dilemas estratégicos, os Estados Unidos são confrontados no
Iraque com uma contradição mais essencial. Pretendem democratizar o
país (uma das razões alegadas para a
guerra), mas não podem admitir que
disso resulte um governo hostil, seja
fundamentalista, seja simpático à ditadura que derrubaram pelas armas.
É uma contradição que diz muito
sobre as ambigüidades da superpotência na condição de poder imperial.
Todo mundo sabe que a idéia de liberdade esteve na origem da Revolução
Americana. Nação formada por refugiados religiosos, a liberdade assumiu
ali a forma de um mínimo de intervenção do Estado na vida das pessoas,
sob a égide de um princípio bem resumido na expressão "live and let live",
viva e deixe viver.
É evidente que os Estados Unidos,
conforme cresceram seus interesses
econômicos e estratégicos no mundo,
desenvolveram uma política externa
compatível com suas ambições. A história da superpotência é indissociável
de sua tradição beligerante, que lhe
propiciou triplicar o território no século 19 à custa dos antigos ocupantes e
dos vizinhos hispânicos e se estabelecer no século 20 como um dos dois
pólos do poder mundial, posição em
que está hoje sozinha.
Mas uma atitude isolacionista, refratária a assumir as "responsabilidades"
do poder imperial, sempre teve peso
na política interna americana. Custou
derrotá-la para que os Estados Unidos
tardiamente entrassem nas duas guerras mundiais. Sob a forma de um pacifismo juvenil, essa atitude foi o fator
decisivo na derrota no Vietnã, confirmando a intuição de Ho Chi Minh de
que o principal teatro de operações
naquela guerra era a opinião pública
norte-americana.
Analistas internacionais especulam
se agora os Estados Unidos estariam
finalmente se tornando um império,
na acepção clássica do termo. Desaparecida a União Soviética, estaria aberto o caminho para que a única superpotência assumisse de vez esse papel,
superando a antiga ambigüidade em
que as duas facções -falcões e pombas, como foram chamadas- se alternavam conforme o estado de ânimo do eleitorado americano.
A doutrina Bush seria a tradução
conjuntural desse movimento mais
amplo, pelo qual os Estados Unidos
passariam a converter seu predomínio econômico e cultural em expressão militar-policial, substituindo uma
política de pressões e contrapressões,
como a que vigorava nos tempos da
Guerra Fria, por uma política de intimidação geral e de intervenções "disciplinares". Um panorama sombrio,
mas bastante plausível.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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