São Paulo, quinta-feira, 03 de junho de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Império, enfim

Com a nomeação do governo provisório encarregado de dirigir o Iraque até as eleições previstas para janeiro de 2005, começou a transição que deverá restituir a soberania ao poder local. Ela começa de modo suspeito, pois a cúpula do novo governo é vista como fantoche dos Estados Unidos, e imprevisível: não se sabe se o novo governo escapará ao controle americano, se será suplantado pela oposição religiosa, se governará.
Qualquer cenário parece possível num ambiente tão instável, cujo pano de fundo é uma insurreição armada contra o ocupante estrangeiro. Sem contar os dilemas estratégicos, os Estados Unidos são confrontados no Iraque com uma contradição mais essencial. Pretendem democratizar o país (uma das razões alegadas para a guerra), mas não podem admitir que disso resulte um governo hostil, seja fundamentalista, seja simpático à ditadura que derrubaram pelas armas.
É uma contradição que diz muito sobre as ambigüidades da superpotência na condição de poder imperial. Todo mundo sabe que a idéia de liberdade esteve na origem da Revolução Americana. Nação formada por refugiados religiosos, a liberdade assumiu ali a forma de um mínimo de intervenção do Estado na vida das pessoas, sob a égide de um princípio bem resumido na expressão "live and let live", viva e deixe viver.
É evidente que os Estados Unidos, conforme cresceram seus interesses econômicos e estratégicos no mundo, desenvolveram uma política externa compatível com suas ambições. A história da superpotência é indissociável de sua tradição beligerante, que lhe propiciou triplicar o território no século 19 à custa dos antigos ocupantes e dos vizinhos hispânicos e se estabelecer no século 20 como um dos dois pólos do poder mundial, posição em que está hoje sozinha.
Mas uma atitude isolacionista, refratária a assumir as "responsabilidades" do poder imperial, sempre teve peso na política interna americana. Custou derrotá-la para que os Estados Unidos tardiamente entrassem nas duas guerras mundiais. Sob a forma de um pacifismo juvenil, essa atitude foi o fator decisivo na derrota no Vietnã, confirmando a intuição de Ho Chi Minh de que o principal teatro de operações naquela guerra era a opinião pública norte-americana.
Analistas internacionais especulam se agora os Estados Unidos estariam finalmente se tornando um império, na acepção clássica do termo. Desaparecida a União Soviética, estaria aberto o caminho para que a única superpotência assumisse de vez esse papel, superando a antiga ambigüidade em que as duas facções -falcões e pombas, como foram chamadas- se alternavam conforme o estado de ânimo do eleitorado americano.
A doutrina Bush seria a tradução conjuntural desse movimento mais amplo, pelo qual os Estados Unidos passariam a converter seu predomínio econômico e cultural em expressão militar-policial, substituindo uma política de pressões e contrapressões, como a que vigorava nos tempos da Guerra Fria, por uma política de intimidação geral e de intervenções "disciplinares". Um panorama sombrio, mas bastante plausível.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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