São Paulo, sábado, 03 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O espetáculo em torno do caso Suzane von Richthofen é prejudicial ao julgamento?

SIM

A comercialização de um julgamento

ALBERTO SILVA FRANCO

NA CONTEMPORANEIDADE , os ideais democráticos e republicanos têm sua base material no pluralismo e na conversação das diferenças. Importa, então, haver uma imprensa livre que possa não só informar mas também, e principalmente, servir de palco para debates, opiniões e críticas, sobretudo para tematizar a atividade do Estado e seus agentes. Por vocação histórica totalitária, o sistema de Justiça brasileiro sempre buscou ser opaco ao olhar público, pervertendo, na sombra da subserviência, sua própria origem e legitimação. Porém, na medida em que nossa sociedade esboça democratizar-se, é gradativamente sentida a importância da atividade judiciária e de seu questionamento. Juízes, tribunais, seus procedimentos e os próprios julgamentos iluminam-se e são, aos poucos, trazidos para as praças públicas -aliás, seus mais verdadeiros e apropriados espaços. O eixo da própria idéia de um processo judicial é sua natureza publicística, ou seja, o de uma obra transparente, realizada aos olhos de todos e que não tem nada a esconder. Contudo, liberdades públicas nada mais são que liberdades. Traduzem-se, portanto, na capacidade de um povo e de suas instituições para o exercício da autonomia, ou seja, para legislar, impor e prosseguir segundo suas próprias normas. Não, no entanto, para continuar na ausência completa delas. Já há muito, os direitos -de uma única pessoa ou de todo um povo- perderam aquele sentido patrimonialista que os marcava nas unívocas urgências revolucionárias da burguesia do século 18, quando eram compreendidos como autênticas possessões territoriais de um patriarcado, com a demarcação de seus domínios exclusivos e absolutos. Em tempos como os de agora, muito mais complexos, os direitos apenas têm algum sentido legítimo quando se exercitam com responsabilidade e respeito ao outro e às suas tragédias, vitalizando-se na medida e no fôlego desse mesmo compromisso. As liberdades públicas, especialmente os direitos de informação e opinião, como todos os direitos, já não constituem domínios ilimitados e irresponsáveis de seus titulares. Estes já não os titularizam senão precariamente, eis que, em um mundo de tantos excluídos, ter esse ou aquele direito é estar comprometido com seu exercício responsável, política e socialmente construtivo. O direito de ter acesso à informação, que assiste à sociedade, e o direito de prestá-la, que se concede precariamente às empresas de comunicação, não podem hoje estar situados além dessas premissas. O primeiro e mais verdadeiro réu de um julgamento é o próprio julgamento. Julgar um crime não é permitir igualar-se a ele, mas, sim, advertir-se com ele. Não julgamos pessoas e suas almas, mas, simplesmente, os fatos e a medida da razoável censura. Não se trata de inaugurar espetáculos emotivos e invasivos, com exposições televisivas intensamente dramáticas em redes nacionais de comunicação que se movimentam por sentidos concorrenciais e propagandísticos. Não temos o direito de transformar escuras tragédias humanas em mercadorias comerciais e vendê-las como produtos massificados. Não podemos selecionar ao acaso três jovens, perdidos em meio a uma cultura consumista e imediatista, para serem autênticas bruxas que serão queimadas em dia festivo, para o delírio coletivo e episódico de uma multidão que veja, nesse instante rápido, a oportunidade de escapar da mesmice de suas rotinas alienadas e cinzentas. Justiça não é circo, mas é pão, já que ela há de ser o alimento que deve nutrir a existência política de um povo. Não podemos, a título de uma magnífica e exaltada indignação, perverter as reais origens de nossas instituições, transpondo as linhas divisórias tão arduamente assentadas entre a civilização e a barbárie. Isso é o que de melhor nos ensinaram os antigos e a sabedoria de tantos que, até com dificuldades mais estupendas do que aquelas por que passamos, nos antecederam. O parricídio, afinal, não é apenas um crime, mas toda uma lógica. A pretexto de censurá-la, não nos deixemos tomar por ela.


ALBERTO SILVA FRANCO , 74, é presidente de honra do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. É autor do livro "Teoria e Prática do Júri", entre outras obras.


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