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CARLOS HEITOR CONY
Outros tempos
RIO DE JANEIRO - "Não resta a
menor dúvida de que o Brasil..."
-as primeiras palavras saíram fáceis, mas o texto embatucou. Dono
do jornal e principal editorialista,
arrancou a lauda da máquina de escrever, amassou-a e jogou-a na cesta. Suspirou, botou nova folha na
velha Remington que herdara do
pai junto com o jornal, a rotativa e
um sítio em Campo Grande onde
criava galinhas.
"Indubitavelmente, a fase que o
Brasil atravessa..." -pensou que
desta ia, mas não foi. Estancou novamente. Pensou, pensou, acendeu
um cigarro, olhou em volta, a redação vazia, somente o rapaz da oficina que esperava o editorial para fechar a página dedicada à opinião.
Arrancou a lauda, não a rasgou, apenas a amassou e a jogou na cesta.
"Se havia qualquer dúvida na capacidade de o Brasil..." -achou bom
o início, encontrara o estilo famoso
que demolira ministros, denunciara escândalos e cobiças do capital
internacional em nossas reservas
de minério de ferro.
Foi ao bebedouro junto aos banheiros, bebeu dois goles e um terceiro para garantir que não teria sede nos próximos 30 minutos, tempo que julgava adequado para terminar o editorial. Voltou à Remington, caprichou no alinhamento da
nova lauda e de um jato obteve a
frase inicial do texto definitivo:
"As dúvidas finalmente acabaram, substituídas pelas certezas de
que o Brasil pode..." -aparentemente parou não por falta de inspiração, mas para quebrar a cinza do
cigarro no cinzeiro que ganhara de
um agência de publicidade.
Leu o que escrevera e não aprovou. Arrancou a lauda com certa
raiva, não de si mesmo, mas do rapaz da oficina que esperava o artigo
para fechar a página. Ordenou:
- Mande botar no lugar aquele
anúncio do homem carregando um
peixe nas costas... o óleo de fígado
de bacalhau...
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