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OTAVIO FRIAS FILHO
O Grande Inquisidor
Na Venezuela e no Peru, governantes de carisma autoritário
acabam de se reeleger num quadro de
colapso da democracia. O provável
sucessor de Clinton expressa "preocupação" com o futuro democrático de
parte do continente. E pesquisas mostram que metade das pessoas é hostil
ou indiferente à democracia.
A explicação é sabida. Depois das ditaduras dos anos 60/70, imaginou-se
que a democracia seria a alavanca para reduzir o descalabro social, mas
aconteceu o contrário. Com a liberação das economias, aumentou o abismo entre a parcela que usufrui, sem
perceber, das vantagens da democracia e a maioria que fica de fora.
É que existem duas democracias.
Uma é a das leis e garantias formais. A
outra é a das condições práticas para
que funcionem e sejam desfrutadas.
Uma tem a ver com o direito de votar,
protestar, organizar-se etc. A outra
tem a ver com o direito de comer, não
ser preso pela cor da pele nem ser destratado em repartições públicas.
O fracasso dos regimes democráticos na América Latina é que eles nunca foram capazes de introjetar a
"grande democracia" das frases pomposas e de suas abundantes constituições de direitos na capilaridade da vida social, convertendo as garantias de
papel numa "microdemocracia" que
chegasse ao cotidiano de todos.
A democracia das leis pode ser implantada a golpes de caneta, uma vez
deposto o governo arbitrário. Mas o
enraizamento do costume democrático nos interstícios da sociedade depende de pressões organizadas e constantes, de mil choques diários e de um
aprendizado coletivo que consome
não uma, mas várias gerações.
Mas quem vive hoje e só uma vez
tem pressa. A percepção popular é a
de que os adversários da justiça social,
reais ou supostos, controlam a democracia, locupletam-se nela (e à custa
dela...), entravam seu funcionamento
quando ela pende para a maioria. Busca-se um atalho em messias como Fujimori ou Chávez.
A situação lembra a fábula do Grande Inquisidor, de Dostoiévski. A fim
de dar mais uma chance aos homens,
Cristo volta à Terra na Sevilha da Contra-reforma. Mal começa a realizar
milagres e ser reconhecido como o
cordeiro de Deus, é preso e interrogado pelo Grande Inquisidor, que o condena à morte.
O argumento do libelo é que, podendo assegurar a felicidade, ao repetir
para sempre o milagre dos pães, Cristo insistiu em que os homens fossem
livres, o que os condenou à penúria, à
dúvida e ao pecado. Pão e liberdade
são irreconciliáveis, diz o Inquisidor, e
por isso o povo pede aos tiranos: "salvem-nos de nós mesmos!"
O delírio do Inquisidor tornou-se
programa de governo em muitos países de hoje, a começar pelo mais populoso de todos, a China. E mesmo
nas melhores democracias a liberdade
de opção é cada vez mais ilusória. Ou
existe diferença séria entre "socialistas" e liberais na Europa, entre Bush e
Gore nos Estados Unidos?
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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