São Paulo, quinta-feira, 03 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OTAVIO FRIAS FILHO

O Grande Inquisidor

Na Venezuela e no Peru, governantes de carisma autoritário acabam de se reeleger num quadro de colapso da democracia. O provável sucessor de Clinton expressa "preocupação" com o futuro democrático de parte do continente. E pesquisas mostram que metade das pessoas é hostil ou indiferente à democracia.
A explicação é sabida. Depois das ditaduras dos anos 60/70, imaginou-se que a democracia seria a alavanca para reduzir o descalabro social, mas aconteceu o contrário. Com a liberação das economias, aumentou o abismo entre a parcela que usufrui, sem perceber, das vantagens da democracia e a maioria que fica de fora.
É que existem duas democracias. Uma é a das leis e garantias formais. A outra é a das condições práticas para que funcionem e sejam desfrutadas. Uma tem a ver com o direito de votar, protestar, organizar-se etc. A outra tem a ver com o direito de comer, não ser preso pela cor da pele nem ser destratado em repartições públicas.
O fracasso dos regimes democráticos na América Latina é que eles nunca foram capazes de introjetar a "grande democracia" das frases pomposas e de suas abundantes constituições de direitos na capilaridade da vida social, convertendo as garantias de papel numa "microdemocracia" que chegasse ao cotidiano de todos.
A democracia das leis pode ser implantada a golpes de caneta, uma vez deposto o governo arbitrário. Mas o enraizamento do costume democrático nos interstícios da sociedade depende de pressões organizadas e constantes, de mil choques diários e de um aprendizado coletivo que consome não uma, mas várias gerações.
Mas quem vive hoje e só uma vez tem pressa. A percepção popular é a de que os adversários da justiça social, reais ou supostos, controlam a democracia, locupletam-se nela (e à custa dela...), entravam seu funcionamento quando ela pende para a maioria. Busca-se um atalho em messias como Fujimori ou Chávez.
A situação lembra a fábula do Grande Inquisidor, de Dostoiévski. A fim de dar mais uma chance aos homens, Cristo volta à Terra na Sevilha da Contra-reforma. Mal começa a realizar milagres e ser reconhecido como o cordeiro de Deus, é preso e interrogado pelo Grande Inquisidor, que o condena à morte.
O argumento do libelo é que, podendo assegurar a felicidade, ao repetir para sempre o milagre dos pães, Cristo insistiu em que os homens fossem livres, o que os condenou à penúria, à dúvida e ao pecado. Pão e liberdade são irreconciliáveis, diz o Inquisidor, e por isso o povo pede aos tiranos: "salvem-nos de nós mesmos!"
O delírio do Inquisidor tornou-se programa de governo em muitos países de hoje, a começar pelo mais populoso de todos, a China. E mesmo nas melhores democracias a liberdade de opção é cada vez mais ilusória. Ou existe diferença séria entre "socialistas" e liberais na Europa, entre Bush e Gore nos Estados Unidos?


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O apoio da nota
Próximo Texto: Frases

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.