São Paulo, terça-feira, 03 de agosto de 2004

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CLÓVIS ROSSI

Passar por cima

SÃO PAULO - Confesso que foi de choque a primeira sensação ao ler a frase de Eduardo Homem de Mello, pai de vítima de seqüestro (e, nessa condição, também vítima), ao relatar a orientação que deu aos filhos e, suponho, demais parentes:
"A ordem agora é passar por cima".
Parece selvageria em estado puro, a lei de talião ressuscitada, a rendição à barbárie. Antes fosse.
Homem de Mello está apenas reagindo, dentro de suas possibilidades. Ou seja, está fazendo o que a sociedade deixou de fazer muitos anos atrás, o que acabou levando à anarquia que é a marca registrada de São Paulo, Rio e outras cidades.
Para entendê-lo (nunca o vi na vida e, portanto, não estou defendendo ou justificando um amigo), basta uma pequena cronologia: tempos atrás, 20 anos talvez, quando a onda de violência começou a se intensificar, a orientação da polícia era não reagir a nenhum assalto, roubo ou fosse qual fosse a violência.
Podia ser um conselho até sensato, se viesse acompanhado do seguinte: não reaja enquanto a gente vai cuidar de atacar a violência, aperfeiçoando o aparelho policial e judicial (para não falar nas causas sociais, naturalmente mais demoradas para serem enfrentadas).
Mas não foi o que aconteceu. Ficou só a ordem de rendição. Só podia dar no que deu: a violência tomou conta de tal forma que ninguém mais pode ou consegue reagir.
Seqüestros no volume em que se registram em São Paulo é coisa do que os norte-americanos passaram a chamar de "failed State", ou país fracassado, em tradução livre. É coisa de Afeganistão, o Iraque atual, alguns países africanos, em que o Estado foi ou substituído ou atropelado pela criminalidade organizada ou desorganizada, tanto faz.
Depois, ainda vem o governo federal com essa campanha boboca de "o brasileiro nunca desiste". Talvez o brasileiro não desista, mas o Brasil, como Estado organizado, desistiu faz tempo da civilização.


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