São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O sopro de Deus

MARIA LÚCIA ALCKMIN

Concordo com os que consideram os seres humanos encaminhados naturalmente para o bem e desviados desse propósito pelas contingências da vida. Sendo encaminhados para o bem, somos essencialmente solidários.
Essa conclusão pode parecer otimista, mas a ela cheguei pela experiência pessoal. As pessoas querem ser úteis e se sentem frustradas quando não conseguem. É isso que tenho observado, principalmente nestes últimos meses, na presidência do Fundo Social de Solidariedade. As imposições da vida moderna, na sociedade de consumo que, para o bem ou para o mal, existe e nos domina, dificultam o convívio e a amizade.
Nas cidades menores há ainda o relacionamento entre pessoas de diferentes ocupações, quando são vizinhas. Nas grandes cidades, como São Paulo, o convívio só se faz normalmente no trabalho e entre membros da mesma família. Fora disso, é a solidão; e a solidão, ao empobrecê-las, torna as pessoas desconfiadas e agressivas.
Alguns estudiosos atribuem certos tipos de crimes hediondos a essa solidão: quando os praticam, os criminosos afirmam a sua identidade. Creio que não é surpreendente haver tão pouca solidariedade no mundo; o surpreendente é que ainda haja tanta solidariedade.
É muito triste viver em um país no qual os habitantes se dividem entre os que podem desfrutar de um altíssimo padrão de vida e os que apenas sobrevivem Deus sabe como. Ninguém pode se sentir em segurança nessas circunstâncias. De que valem o dinheiro e o conforto, se nos falta a liberdade de caminhar tranquilamente pelas ruas?
A violência atingiu de tal forma a sociedade brasileira que crescentes recursos públicos, que poderiam ser empregados em benefício de todos, são utilizados na construção e manutenção de novos presídios. Esse é o grave paradoxo da sociedade industrial contemporânea. Ela tem sido capaz de produzir sempre mais, com menos pessoas empregadas, mas a sua própria natureza reclama a criação do desejo de consumo. É desesperador saber que muitos adolescentes pobres são mortos por outros adolescentes, também pobres, por um par de tênis de marca famosa.
Nós sabemos que os problemas sociais só serão definitivamente resolvidos com o desenvolvimento econômico. Só a prosperidade do país, com a geração dos necessários recursos fiscais, permitirá aos governos promover a educação e garantir a saúde e a possibilidade de trabalho honrado. Esses objetivos exigem longo prazo, mas o sofrimento não pode esperar.


De que valem o dinheiro e o conforto, se nos falta a liberdade de caminhar tranquilamente pelas ruas?
Enquanto a sociedade e o governo procuram criar condições para o pleno desenvolvimento, cabe a todos nós pelo menos amenizar a situação. Mas não devemos fazê-lo empurrados pelo medo; temos de encontrar a razão da solidariedade na alma, que nos foi legada pelo sopro de Deus. Não podemos ser solidários pelo sentimento de medo, e sim pelo sentimento de amor.
Tenho descoberto iniciativas altruísticas que me animam e me estimulam. Elas são tanto mais meritórias quanto mais pobres são os seus responsáveis. São pessoas que trabalham o dia inteiro e, nos fins de semana, participam de alguma atividade em favor das outras.
Infelizmente esses gestos são pouco conhecidos. Seria bom se abríssemos os jornais e tivéssemos notícias sobre esses atos positivos das pessoas simples. Creio que isso estimularia os outros, mostrando-lhes como é fácil fazer alguma coisa. E, mais do que isso, como é fácil se sentir feliz em ajudar.
Há muitas formas de exercer a solidariedade. Eu entendo que o primeiro passo é despertar nas pessoas a consciência de que são capazes e úteis. Elas devem entender que a primeira solidariedade de que carecem é a delas mesmas. A recuperação da auto-estima, porém, é impossível quando a pessoa está passando fome ou, pior ainda, quando os seus filhos passam fome; quando ela não está preparada para o trabalho; e quando a doença a abate. Antes de mais nada, essas pessoas precisam ser atendidas em sua urgência. O passo seguinte é a devolução de sua dignidade.
Meu marido e eu temos sido privilegiados por esse empreendimento. Nós desfrutamos de uma educação cristã e do exemplo familiar, que nos orientou para o exercício da solidariedade.
Fico feliz em ocupar hoje uma posição que me permite fazer alguma coisa pelos outros, mesmo sendo pouco diante do que é preciso fazer.
O Fundo Social de Solidariedade deve ser menos um centro distribuidor de recursos públicos e mais um instrumento de mobilização da sociedade de São Paulo, começando pelos próprios assistidos. Eles devem ser motivados a participar com a sua inteligência, a sua experiência e o seu próprio trabalho.
Graças a Deus, as mulheres dos governadores de São Paulo podem ser úteis, assumindo esse órgão de assistência. Os recursos do Fundo Social de Solidariedade, todos sabemos, são escassos. Mas podemos -e é o que temos feito- estimular os que podem fazer mais.
É alentador registrar que, nos últimos anos, o número de grupos de voluntários no Brasil vem se multiplicando. Conhecemos o depoimento de alguns deles. O que mais chama a atenção nesses relatos é a alegria que eles revelam. As pessoas trocam a sua solidão pela vida ativa e descobrem que em todas as relações humanas há uma troca.
Quando damos a mão a alguém, alguém nos dá a mão. Quando partilhamos com o outro o nosso pão, vemos que nessa comunhão está todo o sentido da vida.
É para viver que o mundo nos foi dado e nos foi dada a alegria do convívio.


Maria Lúcia Alckmin, 50, primeira-dama do Estado de São Paulo, é presidente do Fundo Social de Solidariedade.


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