São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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A banalização das eleições

MARCO ANTONIO VILLA

A sucessão das eleições a cada dois anos traz ao cidadão um sentimento de enfado. As idéias pouco variam, os temas são despolitizados e perdem seu caráter polêmico. O feroz adversário de ontem é o aliado incondicional de hoje, sem que o eleitor entenda bem as razões da súbita reconciliação. Restam os ataques pessoais e a denúncia nem sempre sincera das mazelas das administrações municipal, estadual ou federal.
No caso da eleição municipal, esse quadro é mais grave, pois é considerada a menos relevante, reforçando uma antiga raiz histórica de desprezo pela vida municipal. Muitos candidatos a prefeito aproveitam para reforçar junto ao eleitorado seus nomes com vistas a uma eleição que consideram mais importante. O objetivo não é vencer, mas sim fazer propaganda para a futura eleição a deputado estadual ou federal com dois anos de antecedência: é uma espécie de "lei de Gerson" eleitoral.
Construir o programa de governo, que deveria representar um importante momento do processo eleitoral, é uma tarefa relegada a um plano secundário. Sendo necessário apresentar algo ao eleitorado, os candidatos redigem às pressas um documento que é mostrado no horário eleitoral gratuito como se fosse produto de debate prolongado com as bases partidárias. Como foi ocorrendo uma pasteurização dos problemas, as soluções seguem o mesmo caminho. Apresentam-se obras irrealizáveis sem se saber quais os recursos orçamentários para esses gastos. É uma espécie de solução virtual da demanda social. E, quando o candidato é cobrado por uma promessa não realizada, a culpa sempre é transferida para outra esfera, estadual ou federal.
As alianças entre os partidos não são estabelecidas devido às afinidades ideológicas -o que justificaria plenamente os acordos. O que conta é o tempo que a coligação terá na televisão. Ou, pior, muito pior, são adotadas formas pouco republicanas, que deixariam envergonhado o velho Catão, como a compra de uma bancada partidária estabelecendo um valor per capita ou o pagamento de uma mesada aos aliados fiéis. Chega-se ao cúmulo de um partido ter uma aliança política no município que é diferente da estabelecida na esfera estadual, que, por sua vez, não é a mesma que foi efetuada no Congresso Nacional.


O marketing eleitoral é um dos responsáveis, mas não o único, pela despolitização das eleições

O marketing eleitoral é um dos responsáveis, mas não o único, pela despolitização das eleições. O marqueteiro, até para mostrar eficiência, elabora um modelo ideal e aplica a receita, independentemente de quem comprou seus serviços. As fórmulas repetitivas vão do aspecto exterior do candidato, passando pelos símbolos de campanha, aos slogans e, o que é extremamente danoso para a democracia, chegam até a plataforma eleitoral. Propostas apresentadas em eleições passadas ou em outras cidades e Estados são reapresentadas como se fossem novas e adaptáveis a qualquer contexto. É como se, com a contratação do marqueteiro, este trouxesse, além da sua equipe e de seus métodos de trabalho, o programa eleitoral do candidato. E, como a cada eleição os gastos aumentam, os partidos vão criando formas originais de recolhimento de fundos.
Se é uma velha prática da política brasileira inaugurar obras no ano eleitoral, agora até para pagar os custos da campanha temos uma inovação: a enxurrada de contratos assinados com empresas que vão prestar serviços públicos, alguns de 20 anos, ou seja, que comprometerão cinco gestões municipais.
Esperava-se que, com o restabelecimento da democracia -e nisso já se vão quase 20 anos-, as eleições fossem um momento da vida política, mas não o único, como acabou ocorrendo. As eleições deveriam culminar um processo de participação popular, mesmo que descontínuo. O Poder Legislativo seria o espaço privilegiado da luta cidadã, especialmente quando estivessem em discussão projetos que afetassem a vida da cidade, do Estado, do país. Porém é difícil um paulistano recordar um projeto discutido na Câmara dos Vereadores no último ano e não só. A Câmara, quando é notícia, é devido a alguma transação, para dizer o mínimo, pouco ética.
O mesmo se aplica à Assembléia Legislativa paulista -que, durante semanas, não merece sequer uma linha do noticiário político dos jornais -e ao Congresso Nacional. Este, com 600 congressistas, é uma Casa servil, sempre à espera de alguma benesse do Palácio do Planalto: passa meses, como neste semestre, sem analisar nada de relevante.
Uma profunda reforma política pode reverter esse quadro. Com a adoção do financiamento público das campanhas, da fidelidade partidária, com a extinção dos partidos de aluguel, ao menos no campo político-institucional, teremos, provavelmente, um processo eleitoral mais rico em idéias e com menores distorções representativas.
Mas torna-se urgente a criação de formas permanentes de participação que não se restrinjam à transformação do cidadão em, simplesmente, eleitor. O espaço da política -plural e complexo, como é a sociedade brasileira- tem de ser reconquistado pela cidadania, principalmente quando as eleições -um dos grandes momentos da vida democrática- caminham para a banalização.

Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (editora Globo).

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