São Paulo, terça-feira, 03 de novembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Brasil, Honduras e a nossa política externa

DEISY VENTURA


A discussão volta agora ao seu eixo, qual seja, a solução efetiva do impasse, e não o que ocorre na embaixada brasileira em Tegucigalpa

O PRECÁRIO e tardio desfecho da crise política em Honduras suscita numerosas questões sobre o papel da comunidade internacional em casos de ruptura do Estado de Direito e, particularmente, sobre o inegável, mas mutante, protagonismo dos Estados Unidos na América Latina. Permite, ainda, corrigir o lastimável tom do debate local sobre a guarida ao presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, na embaixada brasileira em Tegucigalpa.
Desde 28 de junho, quando Zelaya foi deposto e expulso ilegalmente do país, o governo putschista de Roberto Micheletti, apesar da débil máscara de legalidade obtida com a ratificação a posteriori do golpe pela Corte Suprema e pelo Parlamento hondurenhos, sofre intensa pressão internacional: a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) pedem a restituição do chefe de Estado, a Organização dos Estados Americanos (OEA) mantém um esforço constante de negociação e nenhum país reconheceu o governo "interino".
A reação mundial ao golpe torna econômica a crise política. Num orçamento público que depende em 20% da ajuda externa, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento interromperam os seus aportes, assim como os Estados Unidos e a Venezuela.
Com a brusca queda dos índices de investimento, é certeira a redução do PIB, que já é um dos mais modestos do continente. Enquanto digladiam-se os líderes políticos, aprofunda-se a desigualdade social, eis que a instabilidade atinge com maior vigor a parcela mais pobre da população.
Contudo, a pressão econômica não impediu a persistência da crise por longos quatro meses.
A ausência de sanções automáticas de maior impacto na Carta Democrática Interamericana faz da OEA uma organização "sem dentes". O governo norte-americano, por sua vez, tardou a agir pela importância marginal de Honduras, porque ainda se encontra em transição e diante do apoio explícito de alguns parlamentares republicanos ao golpe de Micheletti, homem de confiança dos conservadores.
A influência dos Estados Unidos está, aliás, na origem da crise.
Por um lado, Zelaya perdeu o apoio de seu partido ao afastar-se do histórico alinhamento automático com os norte-americanos, em benefício da temida aproximação com o chavismo.
De outra parte, a Constituição hondurenha, elaborada em 1982 com o beneplácito do governo Reagan, expressa uma curiosa obsessão quanto à possibilidade de reforma, a ponto de punir com a "perda da qualidade de cidadão" todo aquele que "incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do presidente da República" (artigo 42, 5), criminalizando de modo esdrúxulo uma eventual convicção política.
Por conseguinte, o cerne do chamado Acordo de Guaymures, firmado pelos contendores em 29 de outubro último, é a renúncia, por Zelaya, a qualquer proposta de reforma constitucional em troca de seu retorno litúrgico ao poder até o mês de janeiro.
Embora dependa de um parecer da Corte Suprema e de aprovação no Parlamento, ambos francamente hostis ao presidente deposto, o sucesso do pacto é provável, na medida em que está em jogo o reconhecimento pela comunidade internacional do resultado das eleições presidenciais de 29 de novembro.
Independentemente do seu cumprimento, o Acordo de Guaymures reconduz a discussão ao seu eixo, qual seja, a solução efetiva do impasse, e não o que ocorre na embaixada brasileira em Tegucigalpa.
Árvore que esconde a floresta, o falso debate grassou nos meios de comunicação brasileiros e chegou até o Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia, por meio de uma natimorta demanda contra o Brasil interposta pelo governo golpista (portanto, desprovido de legitimidade para demandar).
Ora, ao retornar a Honduras, Zelaya evitou a morte política, mas arriscou a própria vida. Porém, para além da questão humanitária, garantir sua incômoda presença gerou as condições para que não voltássemos a falar de Honduras apenas nas eleições de novembro, assimilando, por omissão, mais um golpe de Estado em nosso continente.
O custo com o qual arca o Brasil ao acolher Zelaya nada mais é do que a rara coerência entre o discurso das cláusulas democráticas e a sua política externa, além do ônus natural de uma liderança emergente.
Como tal liderança será doravante exercida e quem participa da elaboração da política externa brasileira, este, sim, é o bom debate que estamos por travar.


DEISY VENTURA , 42, doutora em direito internacional da Universidade de Paris 1, é professora do Instituto de Relações Internacionais da USP.

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